A uniformidade de pensamento é um desejo
buscado, consciente ou inconscientemente, por todos nós. Por mais
"tolerantes" que sejamos, sempre há um segmento ideológico que é
visto como "inimigo" e pelo qual não nutrimos simpatia. Como não é
possível forçar todos a pensarem de modo agradável a nós, o pluralismo acaba se
impondo não como o ideal de todos, mas antes como a melhor alternativa
possível, superior à guerra e à violência. Melhor conviver com o diferente do
que tentar exterminá-lo. Contudo, a tentativa de impor um pensamento único
sempre seduz parcelas significativas da sociedade.
A História está cheia de exemplos, desde o
nazismo alemão até o comunismo soviético, incluindo-se aí o fundamentalismo
islâmico e até mesmo experiências puritanas de criar colônias nos Estados
Unidos onde haveria uma única religião. O totalitarismo é uma tentação que não
respeita nenhum tipo de fronteira. Ao meu ver, é esse tipo de tentação que leva
cristãos de várias matizes a defenderem uma teocracia cristã. Na verdade, já há
proposta para criar o Partido Republicano Teocrata Cristão (PRTC). O objetivo
expresso é o de promover a "adequação de todas as leis da nação às leis
bíblicas", inclusive com apoio de muitos blogueiros, lideranças e igrejas
calvinistas. Esse tipo de movimento é uma reação à aprovação e discussão de
leis que ferem os princípios da Bíblia. Contudo, esse fato exige uma discussão.
Afinal, a teocracia cristã é o caminho que a própria Bíblia ensina para fazer
valer o reino de Deus?
A necessidade da
liberdade religiosa!!!
Creio que a primeira coisa que deve ser
analisada é a questão da liberdade religiosa. O sonho oculto de muitos
segmentos, desde o mais tradicional dos reformados até o mais esotérico
pentecostal-neopentecostal, é o de ver todos seguirem uma mesma fé, tendo a
Bíblia formalmente reconhecida como estando acima de qualquer outra lei. Na
verdade, muitos evangélicos não querem esperar pelo dia em que Jesus Cristo
virá implantar seu Reino...querem vê-lo aqui, de modo visível, já! A separação
entre Igreja e Estado não é mais vista como uma conquista que foi essencial
para garantir a sobrevivência dos evangélicos em sociedades católicas. Agora, o
sonho de muitos é ver as igrejas evangélicas comandando o Estado e impondo a
sua agenda e pensamento a todos (Um tipo de inquisição evangélica).
Contudo, Jesus Cristo nunca exigiu a conversão
de todos os seus ouvintes aos seus ensinamentos. É interessante notar que Jesus
não protesta porque ninguém proíbe os fariseus de ensinar ou porque o ensino
pagão era tolerado pelo Estado romano.
A arma usada por Jesus em seu ministério era a
pregação da Palavra. Era por meio da persuasão, da oratória e dos debates que o
Senhor esperava ganhar o coração dos ouvintes. Cristo nunca questionou porque o
Estado romano não dava apoio ao seu sistema de fé.
O mesmo pode ser dito dos apóstolos. Eles são
sempre retratados como sendo perseguidos por judeus ou pagãos, mas nunca como
perseguidores (Tipo deputados senadores e alguns líderes evangélicos atuais);
daqueles que anunciam outra fé. Isso é evidenciado em Atos 19, quando os pagãos
de Éfeso se revoltam contra a pregação de Paulo:
Pois um ourives, chamado Demétrio, que fazia,
de prata, nichos de Diana e que dava muito lucro aos artífices, convocando-os
juntamente com outros da mesma profissão, disse-lhes: Senhores, sabeis que
deste ofício vem a nossa prosperidade e estais vendo e ouvindo que não só em
Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido e desencaminhado
muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas. Não
somente há o perigo de a nossa profissão cair em descrédito, como também o de o
próprio templo da grande deusa, Diana, ser estimado em nada, e ser mesmo
destruída a majestade daquela que toda a Ásia e o mundo adoram.
Ouvindo isto, encheram-se de furor e clamavam:
Grande é a Diana dos efésios! Foi a cidade tomada de confusão, e todos, à uma,
arremeteram para o teatro, arrebatando os macedônios Gaio e Aristarco,
companheiros de Paulo. (Atos 19:24-29); O tumulto é encerrado pelo escrivão de
Éfeso, que apazigua a multidão afirmando o seguinte: porque estes homens que
aqui trouxestes não são sacrílegos, nem blasfemam contra a nossa deusa. (Atos
19:37). É muito interessante notar isso no Novo Testamento. O desejo dos
cristãos é o de terem liberdade para pregar a Palavra sem correrem o risco de
serem presos. São os outros...os judeus e os pagãos quem buscam usar o Estado
para prender os cristãos e impedir a disseminação da fé cristã. Os discípulos
não cometiam sacrilégios nem blasfemavam contra Diana, embora deixassem claro que
ela não era uma deusa de fato. Isso mostra uma busca pela liberdade religiosa,
e não pela uniformidade religiosa.
Igreja e Estado
são esferas distintas.
Por que nem Jesus e nem os apóstolos
reivindicam o apoio do Estado para a pregação evangélica? Uma das razões é dada
pelo próprio Cristo: dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Convém aqui reler essa história: Naquela mesma hora, os escribas e os
principais sacerdotes procuravam alcançar-lhes as mãos, pois perceberam que, em
referência a eles, dissera esta parábola; mas temiam o povo. Observando-o,
subornaram emissários que se fingiam de justos para verem se o apanhavam em
alguma palavra, a fim de entregá-lo à jurisdição e à autoridade do governador.
Então, o consultaram, dizendo:
Mestre, sabemos que falas e ensinas retamente
e não te deixas levar de respeitos humanos, porém ensinas o caminho de Deus
segundo a verdade; é lícito pagar tributo a César ou não? Mas Jesus,
percebendo-lhes o ardil, respondeu: Mostrai-me um denário. De quem é a efígie e
a inscrição? Prontamente disseram: De César. Então, lhes recomendou Jesus: Dai,
pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não puderam apanhá-lo
em palavra alguma diante do povo; e, admirados da sua resposta, calaram-se.
(Lucas 20:19-26).
O ardil era esse: se Jesus dissesse que o
imposto deveria ser pago, então Ele se colocava ao lado dos romanos e
desagradava aos judeus. Se dissesse que não deveria ser pago, então os judeus
se agradariam, mas Jesus poderia ser acusado diante dos romanos. O Mestre evita
a resposta, ensinando que o povo deve dar a César o que é de César (respeito às
leis, pagamento de impostos e etc...) e a Deus o que é de Deus (fé, adoração,
devoção, o controle da vida pessoal e etc...). Embora a separação entre o Estado
e a Igreja seja um conceito posterior, creio que ele pode ser reconhecido aqui.
Jesus não ensina que o Estado não deve obediência alguma a Deus.
Afinal, o reino dos céus engloba todas as
coisas, inclusive sim os governos. Mas isso não significa que tudo deva ser
misturado. Há sim distinções muito claras. Por exemplo, não cabe a Igreja
decidir qual o melhor sistema de arrecadação tributária ou se um país deve ou
não ter relações diplomáticas com outro. Os cristãos podem opinar sobre isso,
mas a decisão pertence ao Estado, o qual, por sua vez, não deve decidir se a
doutrina calvinista da predestinação é ou não correta. César é César, Deus é
Deus. Sei que aqui eu perdi o apoio de quase todos os hiper-calvinistas...
afinal, a Confissão de Fé de Westminster, documento ícone da fé reformada, foi
feita em um concílio convocado pelo Estado inglês. Contudo, não há base no Novo
Testamento para que o Estado se envolva neste tipo de decisão. Esta não é uma
questão de Governo Humano, e sim de fé.
A natureza do
Reino de Deus.
Talvez muitos pensem que as ideias acima
expostas ferem o ensino bíblico sobre o reino de Deus. Ele não é o Senhor de
todas as coisas? A recusa dos homens em obedecê-Lo não é um pecado? Sim e sim,
digo eu. Mas daí a querermos forçar o Estado a adotar leis bíblicas vai uma
grande diferença. Por quê? Ora, por causa da natureza presente do reino de
Deus? Observe o que diz Jesus no momento em que ele é preso, como narrado em
Mateus 26:51-54. E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, sacou
da espada e, golpeando o servo do sumo sacerdote, cortou-lhe a orelha. Então,
Jesus lhe disse: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada
a espada perecerão. Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me
mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?
Como, pois, se cumpririam as Escrituras,
segundo as quais assim deve suceder? Repare que a espada não foi usada de modo
arbitrário pelo apóstolo Pedro. Jesus estava para ser preso, uma turba com
espadas e porretes ameaçava os apóstolos. Pedro quis apenas defender o seu
Mestre. Mas Jesus reprovou essa atitude. Quem lança mão da espada (violência)
perecerá por causa dela. Se o Cristo de Deus; quisesse, poderia rogar ao Pai
para ter a defesa de anjos. Porém, a espada angelical não era o caminho de
defesa do reino de Deus. Essa mesma ideia é repetida por Jesus quando ele é
confrontado por Pilatos em João 18:33-37.
Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou
Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo
esta pergunta ou tô disseram outros a meu respeito? Replicou Pilatos:
Porventura, sou judeu? A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te
entregaram a mim. Que fizeste? Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim,
para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui.
Então, lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou
rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da
verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
A violência e a coerção não irão promover o
reino de Deus, que só se manifestará de modo plenamente visível neste mundo
quando Cristo voltar. Por isso Jesus diz que seu reino não é terreno: não há
exércitos ou ministros para defendê-lo. O objetivo de Jesus era o de dar
testemunho da verdade.
A testemunha busca convencer, mas quem pode
impor a sentença é o Juiz. E a vinda de Cristo como Juiz está no futuro. Por
isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de
devassidão, os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar
vivos e mortos; pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a mortos,
para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo
Deus. (1 Pedro 4:4-6). Chegará sim o dia em que a verdade será manifesta e todos
serão julgados, o dia em que todo aquele que rejeitou a Cristo sofrerá a pena
por sua rebeldia. Mas, até lá...o dever da igreja não é o de antecipar a
execução do juízo, mas sim o de testemunhar a favor da verdade. Testemunhar não
é forçar ninguém a acreditar ou seguir, é tentar, da melhor forma possível,
convencer os demais a crerem em nosso testemunho.
O mundo é incapaz
de seguir a Deus.
Mas, de todos os argumentos, o melhor para
combater a ideia de uma “teocracia cristã” é o primeiro ponto do calvinismo: a
depravação total. Por esta doutrina, o homem é simplesmente incapaz de,
voluntariamente, seguir a Deus. Se o ser humano não for alcançado pela graça de
Cristo, servir a Deus é algo impossível a ele, mesmo que o Estado tente
obrigá-lo: Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne;
mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor
da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz. Por isso, o
pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus,
nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a
Deus.” (Romanos 8:5-8).
Ora, se os que estão seguindo o pendor
(inclinação) da carne não podem estar sujeitos à lei de Deus e não são capazes
de agradar a Deus, no que adiantaria criar uma teocracia cristã? Ela seria
inútil! Não é isso que tornará o Brasil um país melhor. E isso se torna óbvio
quando lemos o que a Bíblia diz sobre a lei de Deus:
Portanto, por um lado, se revoga a anterior
ordenança, por causa de sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca
aperfeiçoou coisa alguma), e, por outro lado, se introduz esperança superior,
pela qual nos chegamos a Deus. (Hebreus 7:18-19).
Ora, visto que a lei tem sombra dos bens
vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os
ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles
oferecem. (Hebreus 10:1).
A lei de Deus não tem o poder de aperfeiçoar
as pessoas e, por extensão, a sociedade. O Brasil só será transformado por meio
da salvação dos brasileiros, da criação de novos homens que nascem segundo
Cristo Jesus e, voluntariamente, (Regenerados pelo Espírito santo); seguem a
lei de Deus. Só que isso não é uma obra do homem, mas sim de Deus. Um novo ser
humano é algo que só Cristo pode fazer: E, assim, se alguém está em Cristo, é
nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. (2
Coríntios 5:17).
Qual a solução?
Os cristãos trinitarianos, devem cruzar os
braços e deixar o Estado aprovar leis que ferem a Bíblia? Não! De modo algum.
Devemos lutar, nas ruas, no Congresso, na Internet, onde for preciso para
influenciar o mundo a seguir o Evangelho.
Para influenciar,
não para impor!!!
Creio que este é o modelo bíblico de conduta
política para os cristãos. Homens como José, Daniel e Mordecai não tentaram
convencer o Egito, a Babilônia e a Pérsia a adorarem ao Deus de Israel. Eles
influenciaram impérios a se adequarem às leis de Deus por meio de seus
comportamentos e atuações políticas. No caso de Daniel e seus amigos, além de
Mordecai, vemos que foram decisivos para impedir que os judeus fossem forçados
a idolatria ou que fossem massacrados pelos caprichos da nobreza. Foram
instrumentos de Deus em impérios que, guardadas as proporções, eram sociedades
“plurais”. Ao meu ver, o caminho continua sendo esse. O chamado de Deus para a
Igreja é viver em um mundo plural e tentar influenciá-lo de todos os modos, mas
sem impor a sua vontade. O objetivo dos cristãos é convencer a sociedade a obedecer
a Deus...e não o de obrigá-la a fazer isso.
Os cristãos precisam entender que este mundo
não é perfeito. (Ele é 100% Depravado conforme Calvino); nossas decisões
políticas, econômicas e sociais devem levar em conta as imperfeições do estado
atual da criação: por isso é que existem policiais, soldados, leis penais e
democracia. Seria ótimo viver em um planeta onde todos seguem a Deus! Mas isso
não vai acontecer até Jesus voltar. Então, não adianta forçar o caminho nessa
direção pois é um esforço infrutífero em si mesmo. Precisamos aceitar o mundo
como Deus quis que Ele fosse. E, para isso, é necessário aprender a conviver
com os diferentes. Não há caminho melhor do que um onde exista liberdade de
religião, de pensamento e de expressão. Não há caminho melhor do que o
enfrentamento democrático e pacífico. Se, pela democracia, o Brasil escolher
servir a Deus, ótimo! Mas, mesmo assim...as liberdades precisariam ser
garantidas.
Que possamos refletir no ensino bíblico de Romanos 14:12. Assim, pois,
cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus. Que assim seja. Amém! Soli Deo Gloria.