A Inglaterra sob as Bênçãos da Reforma - Bispo J. C. Ryle / Parte IV
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
Me proponho ainda a demonstrar, resumidamente, as BÊNÇÃOS que a Reforma
Inglesa proporcionou a este país. Até agora vimos apenas os imensos males dos
quais fomos libertos. Vamos agora mudar o foco e olhar para a imensa quantidade
de bem que ela trouxe. Vocês ouviram sobre o que a Reforma destruiu. Você agora
ouvirá a respeito do que a Reforma construiu em seu lugar. Antes
de mais nada, devemos à Reforma uma Bíblia inglesa e a liberdade de todo homem,
mulher e criança ter acesso a ela. Com a Bíblia inglesa veio o direito e o dever
do livre exame e a afirmação do grande princípio contido em nosso Artigo VI,
que diz: “a Sagrada Escritura contém todas as coisas necessárias à salvação”,
sendo ela nossa única regra de fé e prática.
De
todos os meios que provocaram a derrubada do papado neste país, a tradução da
Bíblia foi a primeira e a mais poderosa. Foi um golpe direto no nariz de todo o
sistema romanista. Com o advento de uma Bíblia livre, e da liberdade para aqueles
que a usavam, os defensores do Papa não podiam permanecer por muito tempo. Todo
o enorme sistema do papado rachou, estremeceu e caiu no chão como um baralho de cartas.
Com uma Bíblia em todas as paróquias da nação, todo inglês letrado e inteligente
logo percebeu que a religião sacerdotal não tinha base na Sagrada Escritura. É
um fato marcante e revelador que, de todos os meios que se combinaram, viabilizando
a Reforma Inglesa, nada sofreu maior oposição que a tradução e a circulação das
Escrituras. Mesmo em 1519, muito antes de Cranmer começar seu bom trabalho, Fox
registra que seis homens e uma mulher foram queimados em Coventry por ensinarem
a seus filhos o Pai-Nosso e os Dez Mandamentos. E a acusação contra eles não era
a posse de uma Bíblia, mas de uma Bíblia inglesa, ou “livro da nova lei na Inglaterra”.
Fiel a si mesma, a Igreja de Roma sempre amou as trevas e desprezou as Escrituras.
Depois, quando a Reforma começou de fato, nada parece ter alarmado e enfurecido
mais o sacerdócio romano quanto a disseminação da Bíblia em inglês.
Foi
isso que custou a vida do reformador Tyndale. Ele foi queimado porque traduziu
e divulgou as Escrituras. É história conhecida a inimizade implacável com a
qual ele foi perseguido e finalmente caçado até a morte por Sir Thomas More e
outros. Os sacerdotes sabiam que o jogo deles acabaria se as pessoas conhecessem
as Escrituras. Impedir o progresso da causa protestante, assim que os leigos
começaram a ler as Escrituras, teria sido como tentar impedir que a maré subisse
em Chepstow, ou que os satélites de Júpiter girassem em volta dele. Em vão, o
bispo Tunstall apreendeu a tradução e o bispo Bonner queimou o mártir na cruz de
St. Paul. Seus ideais percorriam a terra como fogo e, desde então, a causa do papa
na Inglaterra foi abalada desde suas bases. Você que lê a Bíblia diariamente e
“se deleita na lei do Senhor”, jamais se esqueça dessa dívida para com a Reforma.
Devemos à Reforma uma estrada aberta para o trono da graça e à grande fonte de
paz com Deus. Essa estrada abençoada havia sido bloqueada há muito tempo, e feita
intransitável por montões de lixo oriundos das invenções humanas. Sob o
pretexto de consertar e melhorar a estrada, os clérigos de Roma haviam estragado
tudo. Aquele que desejava obter o perdão tinha que procurá-lo através de uma
selva de sacerdotes, santos, culto a Maria, missas, penitências, confissões,
absolvições, e assim por diante.
Os
poços de água cavados pelos apóstolos foram entupidos com terra pelos filisteus
romanistas e praticamente inutilizados. Esta enorme massa de lixo foi removida
pelos reformadores. A doutrina do nosso glorioso Artigo XI foi toda pregada,
publicada e proclamada. Se passou a ensinar que a justificação era pela fé sem
a letra da lei, e que todo pecador tinha o direito de ir direto ao Senhor Jesus
Cristo para remissão dos pecados, sem depender de Papa, sacerdote, confissão ou
absolvição, missas ou extrema unção. A partir desse momento, a espinha dorsal
do Papismo Inglês foi quebrada. Vocês que estão andando pela fé e desfrutando
da paz com Deus pela simples confiança no precioso sangue da Expiação, nunca se
esqueçam de que possuem uma dívida com a Reforma. Devemos à Reforma um verdadeiro
conceito do culto cristão. Enquanto o Romanismo governou a Inglaterra sem ser
perturbado, o serviço da casa de Deus parece ter sido, para a maioria dos
ingleses, uma performance misteriosa e que eles deixaram inteiramente nas mãos
dos sacerdotes. Se estivessem presentes em qualquer culto, podiam apenas
partilhar o sono em comum; eram espectadores ignorantes. Era um mero culto
histriônico e formal, para o qual os leigos podiam trazer apenas seus corpos,
mas no qual suas mentes, razão, espírito e compreensão não podiam tomar parte
alguma.
Tal
solene farsa foi completamente interrompida pelos nossos reformadores. Eles
estabeleceram o grande princípio presente em nosso Artigo XXIV: “é coisa claramente
repugnante à Palavra de Deus, e ao costume da Igreja primitiva, que a oração
pública na igreja, ou ministração dos sacramentos, seja em uma língua que as
pessoas não compreendam”. Eles introduziram em todas as paróquias inglesas a Bíblia
no idioma comum, um Livro de Oração na língua comum, a pregação passou a ser feita
na língua comum, os cultos passaram a ser simples e a ministração dos
Sacramentos despojada de teatralidade. Claro que os Reformadores não poderiam
tornar as pessoas cristãs. Porém, em todos os recantos da nação, foi estabelecido
em cada paróquia um culto que o trabalhador mais pobre pudesse compreender,
desde Land’s End até North Foreland. Você que realmente gosta do serviço
simples de nossa Liturgia (que quando realizado com entusiasmo e devoção é
inigualável), não se esqueça, a cada Domingo, que também isso você deve à
Reforma... Devemos à Reforma um conceito correto sobre o papel do ministro
cristão.
Antes
que os olhos dos ingleses fossem abertos pela Bíblia, acreditava-se que todo
ministro cristão era um sacerdote, como nos dias do judaísmo, e que todo clérigo
oferecia sacrifícios a Deus. Era o clero que possuía as chaves dos céus, e
servia como um mediador entre Deus e os homens. Naturalmente, o resultado foi,
geralmente, terem se tornado tiranos espirituais e exaltados a uma posição que
era o suficiente para corromper a mente de qualquer mortal. De tão exaltados,
os sacerdotes se tornaram senhores e déspotas. De tão afastados, os leigos
tornaram-se servos e escravos.
Os reformadores
conduziram o ofício do clero ao seu nível escriturístico. O despojaram inteiramente
de qualquer caráter sacerdotal. Extirparam as palavras como “sacrifício” e
“altar” do Livro de Oração, e embora mantivessem a palavra “sacerdote”, o interpretavam
apenas no sentido de “presbítero” ou “ancião”. Ensinavam ao povo que os clérigos não eram os senhores da
Igreja, mas, como Paulo e Timóteo, deviam ser servos (Filipenses.1:1), embaixadores,
mensageiros, testemunhas, evangelistas, mestres e ministros da palavra e dos
sacramentos. Declararam, acima de tudo, como mostra nossa liturgia de Ordenação,
que o principal trabalho de um ministro cristão é “pregar a palavra, ser
diligente em oração e ler as Escrituras”. E quanto ao poder de ter as chaves dos
céus, para ligar e desligar, ensinaram, como se lê claramente na Apologia escrita
por Jewell, que isso devia ser exercido pela pregação do Evangelho aos
pecadores, colocando diante deles uma porta aberta, e advertindo aos pecadores
impenitentes de que encontrariam os portões do céu fechados. Você que conhece o
valor de um verdadeiro ministro cristão, e o quanto o púlpito é superior ao
confessionário, nunca se esqueça de que, para chegar a tal compreensão, você
adquiriu uma dívida para com a Reforma. Finalmente, devemos à Reforma um padrão
correto de santidade cristã.
Antes
dos dias de Henrique VIII foi amplamente aceito e vista como inquestionável a
opinião de que a vida monástica, e os votos de celibato, eram os únicos meios
para se alcançar a eminente santidade e escapar do pecado. Miríades de homens e
mulheres continuamente se tornando monges e freiras sob a vã esperança de se tornarem
religiosos, afastando-se da sociedade e do mundo. Na prática, essa teoria
falhou completamente e ruiu. Os reformadores cortaram pela raiz essa ideia
falaciosa, dissolvendo casas religiosas e dispersando seus habitantes. É verdade
que isso foi feito de modo grosseiro, e que as propriedades de muitas abadias e
mosteiros foram desgraçadamente aplicadas.
Mas,
à medida em si foi sábia e, como uma operação cirúrgica severa, salvou a saúde
à custa de um sofrimento temporário. O grande princípio escriturístico de que a
verdadeira religião não deve andar as escondidas, nem fugir das dificuldades,
mas deve cumprir seu chamado onde quer que Deus nos chame para enfrentar nossos
inimigos, foi estabelecido. Não é fugindo do demônio e entregando-lhe a gestão do
mundo, e sim resistindo com coragem ao diabo e vencendo-o, que a verdadeira
santidade deve ser exibida. Os Reformadores ordenaram que os Dez Mandamentos fossem
expostos em todas as paróquias, e ensinados a todas as crianças, e que o dever para
com Deus e nosso próximo fosse ensinado no velho catecismo. Eles se recusaram a
dar o menor encorajamento à noção de que seria possível se tornar santo esquivando-se
das responsabilidades cotidianas. Não é exagero dizer que nesse processo o tom
da moralidade inglesa tenha sido elevado.
Se a Inglaterra, apesar de todos os seus muitos defeitos, tem hoje um padrão mais elevado de vida diária do que a maioria dos países, nunca nos esqueçamos de que devemos isso à Reforma. Este foi um breve e condensado relato das bênçãos que a Reforma proporcionou à Inglaterra. Não me alonguei muito sobre elas, de propósito; afinal, não são coisas antigas como superstições papistas, mas privilégios vivos com os quais todos nós estamos familiarizados. Elas são uma parte do ar que respiramos, e do sol que nos deleita. São uma rica herança que todos os que vivem na Inglaterra, temo que inconscientemente em muitos casos, gozam aqui e agora. E nossa familiaridade com elas é um perigo. Não podemos nem imaginar quão grandes as bênçãos religiosas de que desfrutamos em comparação com nossos ancestrais de quatrocentos anos atrás. Sequer podemos imaginar adequadamente quão graves os males das quais a Reforma nos libertou. Mas tenho coragem de afirmar o seguinte: seja qual for a posição da Inglaterra entre as nações do mundo, como um país cristão; seja qual for o nível de liberdade política que temos; seja qual for nossa luz e liberdade religiosa; seja qual for a pureza e a felicidade de nossos lares; seja qual for a proteção e o cuidado para com os pobres; devemos isso à Reforma Protestante. O homem incapaz de enxergar isso é, no meu humilde julgamento, um homem muito cego e ingrato.
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
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