quinta-feira, 18 de agosto de 2022

 

Carta de Martin Bucer para João Calvino. (Datado em Cambridge no domingo de Pentecostes, 1550.)

Realmente preciso do conforto de vossas cartas. Pois, embora tenha neste país amigos e irmãos fiéis no Senhor, não sei por qual motivo não estão me querendo aqui, por isso desejo ansiosamente informar-me sobre meus velhos amigos e colegas, há muito provados, para saber como estão progredindo na obra do Senhor e também para que possam me aconselhar, confortar e exortar.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

Datado em Cambridge no domingo de Pentecostes, 1550.

Realmente preciso do conforto de vossas cartas. Pois, embora tenha neste país amigos e irmãos fiéis no Senhor, não sei por qual motivo não estão me querendo aqui, por isso desejo ansiosamente informar-me sobre meus velhos amigos e colegas, há muito provados, para saber como estão progredindo na obra do Senhor e também para que possam me aconselhar, confortar e exortar. De tempos em tempos enviam-me relatos de minha cidade natal e de outras partes da Alemanha, os quais em grande medida angustiam minha mente, e de igual modo, a maneira como a causa de Cristo é conduzida neste país, que, a menos que o Senhor olhe com sua peculiar misericórdia para o nosso ingênuo e religioso rei e para alguns outros indivíduos piedosos, é de se temer muito, que em breve, a terrível ira de Deus também possa arder contra este reino.

 

Os bispos ainda não conseguiram chegar a um acordo quanto à doutrina cristã, muito menos quanto à disciplina, e muito poucas paróquias têm pastores qualificados para o seu serviço. A maioria deles se vendem à nobreza, mesmo entre os da ordem eclesiástica e também entre aqueles que desejam ser considerados evangelistas, há indivíduos que detêm o controle de três ou quatro paróquias, ou até mais, sem ao menos ministrar em qualquer uma delas; antes nomeiam substitutos que se satisfazem com o mínimo de estipêndio, estes, em sua maioria, não conseguem nem mesmo ler em inglês e no íntimo são meros papistas.                       

 

A nobreza também prefere manter em muitas paróquias aqueles que estiveram em mosteiros e que são absolutamente indoutos e completamente impróprios para o ofício sagrado; e isso, apenas para se livrarem do encargo do pagamento dos subsídios anuais. Consequentemente, pode-se encontrar paróquias nas quais não se prega um sermão há alguns anos.

 

E tu sabes do quão pouco pode ser realizado para a restauração do reino de Cristo através de meras ordenanças e remoções dos utensílios de superstição. Cada uma das universidades deste país possui excelentes faculdades, providas de vultosas doações e proveitosos estatutos, que não se encontram em nenhuma outra universidade no mundo. A maioria dessas faculdades mantêm acima de cem estudantes; além de muitas pessoas serem extremamente bem instruídas, promovem também respeitosas feiras de trajes e livros.

 

É dessas faculdades que, de tempos em tempos, deveriam sair uma multidão de fiéis ministros; pois, é exigido a todos os mestres em Artes que também se tornem estudantes em Teologia, com exceção apenas de quatro deles em cada faculdade, uma vez que se espera que dois deles estudem Medicina e dois outros Direito. Mas, há muito tempo existe uma conivência que é especialmente predominante neste momento, a grande maioria dos membros são indesejáveis papistas ou devassos epicuristas que, na medida em que são capazes, atraem ao seu modo de pensar jovens para incuti-los de uma aversão à sã doutrina e à disciplina cristã.

 

E até mesmo nossos amigos são tão parcimoniosos em seus sermões que mesmo durante toda a Quaresma, que eles ainda fazem questão de observar, não pregam uma vez se quer ao povo, com exceção de um ou dois domingos, nem mesmo em dias celebrativos como a morte e ressurreição de Cristo ou como o dia de hoje [Dia de Pentecostes]. Às vezes, também em muitas paroquiais os clérigos recitam e administram os cultos de modo que as pessoas não tenham um maior conhecimento dos mistérios de Cristo, como se o latim ainda estivesse em uso, em lugar do vernáculo.

                       

E quando homens piedosos fazem reclamações aos governantes do reino a respeito desses lamentáveis desvios da igreja, os mesmos dizem que esse é um assunto para os bispos, estes devem reparar o mal; quando a demanda é levada aos bispos, muitos dos quais professam o Evangelho, a resposta é que nada podem fazer sem que se tenha um ato do parlamento com essa finalidade. E embora o grande conselho da nação se reúna todos os anos, muitos temas seculares são priorizados em detrimento da causa de Cristo, que não encontra espaço para ser atendida.

 

Então, submetem a consideração desses assuntos à outras tantas pessoas, que apresentam opiniões tão discordantes, que nem conseguem se reunir num mesmo lugar, muito menos chegar a uma adequada e unânime resolução sobre assuntos de tal importância. Querem postergar a causa de Cristo, tanto os bispos, a quem a indolência e a luxúria do anticristo parecem ser mais aprazíveis do que a Cruz de Cristo, quanto os nobres, que favorecem aos mesmos com muitas de suas atividades; sendo enriquecidos pelas posses da igreja, preferem perpetuar a atual desolação da igreja e garantir seus próprios interesses do que considerar a divina reforma. Além desses males devemos observar ainda que, não poucas pessoas, mesmo deixando de lado toda cobiça depois de um verdadeiro arrependimento, tendo acolhido a fé, as boas obras, a comunhão e a disciplina da igreja, nada mais fazem do que entrar em controvérsias e contendas, e muitas vezes profanam nossos sacramentos e cultos sagrados, afastando Cristo, nosso Salvador, ao confina-Lo unicamente ao seu lugar no céu.

 

São aqueles que seguem principalmente mestres que ousam escrever e afirmar publicamente que é fanatismo a tentativa de elaborar qualquer sistema eclesiástico e de disciplina penitencial, por meio do qual os ofensores devem ser obrigados abertamente a buscar o arrependimento, e quando isso for realizado, ser perdoados de suas ofensas e receber a absolvição da igreja por seus pecados pessoais. Assim, por seu próprio entendimento, se permitem colocar interpretações sobre qualquer parte da palavra de Deus, por mais clara que seja. Ambos os motivos indicam que esses têm aversão, para não dizer ódio, daqueles que ensinam corretamente a verdade. Excelentíssimo Calvino, escrevi a ti de forma franca, para que, assim, possas ser mais fervoroso em suas orações por estas igrejas e para quando escreveres ao duque de Somerset, possas adverti-lo seriamente a respeito desta desolação e infidelidade das igrejas, que, com muito poucas exceções, são confiadas àqueles que não têm o conhecimento de Cristo e nem se importam em conhecer qualquer coisa sobre Ele. Peço, além disso, que ninguém, exceto Farell e Viret, leiam esta carta; pois estais! ciente do quanto seria inadequado que estas coisas viessem a público, especialmente por nosso intermédio. Redobre suas orações pelo sereno rei, que está fazendo um progresso maravilhoso tanto em piedade quanto em erudição. Havendo papistas furiosos por toda parte, que observam e constatam que o rei está exercendo todo o seu poder para restaurar o Reino de Cristo, humanamente falando, é fácil perceber o perigo que ele corre. Percebem que sua irmã mais velha [1] defende e persevera no papismo, seja por sua própria disposição, seja pela confiança depositada em seu primo [2].

 

Mas, certamente a frieza de nossos esforços em favor do reino de Cristo asseguram essas ameaças e oposições. Agradeça ao Senhor comigo, por ter, em grande medida, me aliviado da enfermidade que pela segunda vez me acometeu severamente até meados de março. Pois, novamente, estou sendo capaz de cumprir em alguma medida os meus deveres, embora ainda exista muita fraqueza nas pernas, braços e mãos, que ainda me impedem de estar em plena atividade. Meu estômago também tem estado facilmente desordenado e meus intestinos estão em um estado obstinado. Orai ao Senhor por mim, para que, se possível, livre-me daqui ou, de alguma maneira, faça-me útil à sua igreja; sim, que ele santifique por meu intermédio o seu Nome, da maneira que melhor lhe parecer. Adeus a todos os seus amigos, aos valorosos Farell, Viret e a seus outros associados na missão.

 

Cambridge, Domingo de Pentecostes, 1550.Vosso, M. BUCER.

 

 

[1] Maria, irmã mais velha de Eduardo VI, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, seria conhecida como Maria, a sanguinária, que ao assumir posteriormente o trono inglês restaurou o papismo e perseguiu os reformadores, promovendo o maior martírio da História da Inglaterra. [2] Carlos V, cuja mãe era irmã de Catarina de Aragão.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

Ao utilizar este texto! observe as normas acadêmicas, ou seja, cite o autor e o tradutor, bem como, o link de sua fonte original.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Graça e paz, seja muito bem vindo ao portal de periódicos da IPOB, analisaremos seu comentário e o publicaremos se ele for Cristão, Piedoso e Respeitoso.