sábado, 20 de agosto de 2022

 

Prefácio Ao Saltério de Genebra de 1543 / Por João Calvino.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

Genebra em 1550. 

PREFÁCIO AO SALTÉRIO DE GENEBRA

Pelo Ilustre Reformador: João Calvino [1543].

 

No cristianismo é algo imprescindível, e um dos mais necessários, que todos os fiéis observem e mantenham a comunhão com a Igreja em sua vizinhança, frequentando as assembleias que são realizadas aos domingos e em outros dias, para honrar e servir a Deus; também é conveniente e razoável que todos saibam e ouçam o que é dito e feito no templo, para que frutifiquem e recebam edificação.

 

A COMPREENSÃO É ESSENCIAL

 

Nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos observar quando nos reunimos em seu nome apenas para nos entreter neste mundo, observando e se deleitando nisso; antes, no entanto, ele desejava que nisso houvesse benefício para todo o seu povo; como São Paulo testemunha, ordenando que tudo o que é feito na Igreja seja direcionado para a edificação comum de todos, e isso o seu servo não teria ordenado se não tivesse sido a intenção do Mestre. Mas, isso não pode ser feito a menos que sejamos instruídos a ter entendimento de tudo o que foi ordenado para o nosso proveito. Porque dizer que somos capazes de ter devoção, seja em orações ou cerimônias, sem nada entender deles, por mais que isso seja comumente aceito, isso é uma grande zombaria. Esta boa afeição por Deus não deve ser uma coisa nem morta e nem animalesca, pelo contrário, deve ser um movimento vivo, procedente do Espírito Santo, quando o coração é verdadeiramente tocado e a compreensão iluminada. E, de fato, se alguém fosse capaz de ser edificado apenas pelas coisas que observa, sem conhecimento do que significam, São Paulo não proibiria tão rigorosamente o falar em uma língua desconhecida, e ele não usaria esse raciocínio, de que não há edificação a menos que haja uma doutrina. Contudo, se realmente queremos utilizar na igreja e honrar as ordenanças sagradas de nosso Senhor, a primeira coisa é saber o que elas contêm, o que elas significam e querem dizer, e para qual finalidade, a fim de que seu uso possa ser útil e salutar e, consequentemente, corretamente dirigido.

 

ELEMENTOS NA ADORAÇÃO

 

Agora, há brevemente três coisas que nosso Senhor nos ordenou a observar em nossas assembleias espirituais, a saber: a pregação de Sua Palavra, orações públicas e solenes, e a administração dos sacramentos. Abstenho-me de falar de sermões neste momento, porque não há dúvida sobre eles. Mencionando as outras partes que restam, temos o mandamento expresso do Espírito Santo de que as orações devem ser feitas em uma linguagem comumente conhecida pelo povo; e o Apóstolo disse que as pessoas não devem responder Amém às orações que forem feitas em línguas estranhas. Não obstante, isso ocorre porque as orações devem ser feitas nominalmente e por todas as pessoas, devendo cada um participar. Assim, há um grande desvario por parte daqueles que introduziram a língua latina na Igreja, que geralmente não é compreendida. E não há nem perspicácia, nem sofisma que possam desculpá-los, porque esta prática é perversa e desagradável a Deus. Além disso, não há razão para supor que Deus ache agradável algo que vai diretamente contra sua vontade, e, por assim dizer, a despeito dEle. E assim nada o desagrada mais do que fazerem o que Ele proibiu e vangloriar-se desta rebelião como se fosse algo santo e muito louvável.

 

SACRAMENTOS UNIDOS COM DOUTRINA

 

Quanto aos sacramentos, se olharmos minuciosamente sua natureza, reconheceremos que é um costume perverso não os celebrar de tal maneira que as pessoas além de observarem, possam entender os mistérios que estão ali contidos. Porque se são palavras visíveis (como disse Santo Agostinho) é necessário que haja não só um espetáculo exterior, mas também que a doutrina seja unida com ele para dar-lhe compreensão. E também o nosso Senhor em os instituindo demonstrou bem isso: porque ele diz que estes são testemunhos da aliança que ele fez conosco, e que ele confirmou por sua morte. É necessário, portanto, dar-lhes o seu significado, de maneira que possamos conhecer e compreender o que Ele disse; caso contrário, seria em vão que o nosso Senhor tenha aberto a boca para falar, se ele não tivesse ao seu redor ouvidos para ouvir.

 

E assim não há necessidade de uma longa disputa sobre isso. E quando o assunto é examinado com bom senso, não há ninguém que não confesse que é uma pura apresentação de circo para divertir as pessoas com símbolos que não têm significado algum. Portanto, é fácil ver que alguém profana os Sacramentos de Jesus Cristo, administrando-os para que as pessoas não entendam de forma alguma as palavras que estão sendo ditas sobre eles. E, de fato, pode-se ver as superstições que surgem de tal prática. Porque é comumente considerado que a consagração, por exemplo, da água para o batismo, ou do pão e vinho da Ceia de Nosso Senhor, é como uma espécie de encantamento; ou seja, quando se expira solenemente e pronuncia com a boca as palavras, as criaturas incapazes de compreender pelos sentidos, sentem o poder, muito embora os homens não entendam nada.

 

Mas a verdadeira consagração é a que se faz através da palavra de fé, quando é declarada e recebida, como Santo Agostinho disse: O que está expressamente contido nas palavras de Jesus Cristo. Porque ele não disse ao pão que é o seu corpo: em vez disso, ele dirigiu a palavra à congregação dos fiéis, dizendo, tomai, comei, e assim por diante. Se quisermos, portanto, celebrar verdadeiramente este Sacramento, é necessário que tenhamos a doutrina, por meio da qual o significado do sacramento seja declarado a nós. Isso pode parecer muito estranho àqueles que não estão acostumados a isso, como acontece com todas as coisas novas; mas é muito razoável se formos discípulos de Jesus Cristo preferir suas instituições ao nosso costume.

 

E o que ele instituiu desde o início não deve parecer novo para nós. Se isso ainda for incapaz de penetrar no entendimento de alguém, é necessário que oremos a Deus para que se agrade em iluminar os ignorantes, para fazê-los compreender o quanto mais sábio é que todos os homens da terra devam aprender a não corrigir-se por meio de seus próprios sentidos, nem pela insensatez de seus líderes que são cegos. No entanto, para o uso de nossa Igreja, pareceu-nos bom tornar público a fórmula escrita dessas orações e sacramentos, a fim de que cada um possa reconhecer o que ouve, aquilo que é dito e feito na assembleia cristã. Não obstante, haverá proveito deste livro, não somente para o povo desta Igreja, mas também a todos aqueles que desejam saber o que os fiéis devem observar e cumprir quando se reunirem em nome de Cristo.

 

DOIS TIPOS DE ORAÇÕES

 

Reunimos, assim, um resumo da forma de celebrar os sacramentos e de santificar o casamento; igualmente reunimos as orações e louvores que usamos. Falaremos mais tarde dos Sacramentos. Quanto às orações públicas, existem dois tipos: as que são expressas apenas em palavras e as que são cantadas. E isso não é algo inventado há pouco tempo. Desde os primórdios da Igreja, isso tem sido assim, como aparece na história. E mesmo São Paulo fala não só de orar com palavras, mas também de cantar. E, na verdade, sabemos pela experiência que o canto tem grande força e vigor para mover e inflamar os corações dos homens para invocar e louvar a Deus com um zelo mais intenso e fervoroso. Deve-se cuidar para que a música não seja nem superficial nem fútil; mas que tenha importância e seja majestosa (como diz Santo Agostinho), e, também, há uma grande diferença entre a música que se faz para entreter os homens à mesa e em suas casas, e os Salmos que são cantados na Igreja na presença de Deus e seus anjos. Mas, quando alguém deseja julgar corretamente a forma que está aqui apresentada, esperamos que ela seja considerada santa e pura, vendo que ela é simplesmente direcionada para a edificação da qual falamos.

 

EXPRESSÃO ATRAVÉS DO CANTO

 

E, no entanto, a prática do canto pode estender-se mais amplamente; nas casas e nos campos é mesmo uma inspiração para nós, por assim dizer, um instrumento de louvor a Deus, para elevar nossos corações a Ele, para nos consolar meditando sobre sua virtude, bondade, sabedoria e justiça; isso é mais necessário do que se possa dizer. Em primeiro lugar, não é sem motivo que o Espírito Santo nos exorta com tanto cuidado ao longo das Escrituras Sagradas a regozijar-nos em Deus e que toda a nossa alegria deva estar total e verdadeiramente direcionada a esse fim, porque ele sabe o quanto estamos inclinados a regozijar-nos na vaidade.  Nossa natureza sempre nos atrai e nos induz a buscar todos os meios de alegria tola e cruel; mas, pelo contrário, nosso Senhor, nos desvia disso e nos retira das tentações da carne e do mundo, apresentando todos os meios possíveis para nos ocupar daquela alegria espiritual que ele tanto nos recomenda.

 

IMPORTÂNCIA DA MÚSICA

 

Agora, entre outras coisas que são adequadas para restaurar o homem e dar-lhe deleite, a música é a primeira, ou uma das principais; e é necessário que pensemos que é um dom de Deus designado para esse uso. Além disso, no entanto, devemos ser muito cuidadosos para não abusar desse dom, com receio de maculá-lo e contaminá-lo, para não converter em condenação aquilo que foi concedido para nosso benefício e uso. Se não houvesse outra consideração além dessa, deveríamos realmente moderar o uso da música, para fazê-la servir somente as coisas honradas; para que não dê oportunidade às paixões e à dissolução, fazendo-nos agir irracionalmente em prazeres desordenados, esse dom não deve ser transformado em instrumento de lascívia ou de qualquer outra atitude vergonhosa.


Arranjo homorítmico (ou seja, estilo de hino) melodia do salmo 124, do Saltério de Genebra. 

 O PODER DA MÚSICA:

Há de ser considerado ainda que: não existe nada mais eficaz para mudar ou dobrar a disposição moral dos homens [do que a música], como Platão prudentemente a considerou. E, de fato, descobrimos pela experiência que ela tem um poder sagrado e extraordinário para mover corações de uma forma ou de outra. Por conseguinte, devemos ser ainda mais diligentes em sua regulamentação de tal forma que seja benéfica para nós e de forma alguma seja nociva. Por esta razão, os antigos doutores da Igreja frequentemente exortavam sobre isso, as pessoas de seu tempo eram viciadas em canções desonestas e desavergonhadas, não sem motivo se referiam a elas como veneno mortal e satânico, por corromper o mundo. Ademais, ao falar agora de música, eu entendo duas partes, a saber: primeiro a letra, o tema ou conteúdo; em segundo a canção, ou a melodia. É verdade que toda palavra nociva (como disse São Paulo) perverte os bons costumes, mas quando há melodia com ela, ela perfura o coração muito mais fortemente, e entra nele; da mesma maneira que através de um funil, o vinho é derramado no vaso, também o veneno e a corrupção são destilados nas profundezas do coração pela melodia.

 

PORQUE A ESCOLHA DOS SALMOS

 

E o que deve ser feito? É ter canções não só dignas, mas também santas, que serão como estímulos para nos incitar a orar e louvar a Deus, e meditar sobre suas obras, a fim de amá-lo, temê-lo, honrá-lo e glorificá-lo. Além disso, o que Santo Agostinho disse é verdade, que ninguém é capaz de cantar coisas dignas de Deus, exceto as que dEle recebeu. Portanto, quando tivermos examinado minuciosamente e pesquisado em todos os lugares, não encontraremos melhores cânticos nem mais adequados para esse propósito do que os Salmos de Davi, que o Espírito Santo proferiu e realizou através dele. Além disso, quando os cantamos, temos a certeza de que Deus coloca esses em nossos lábios, como se estivesse cantando em nós para exaltar sua glória. Por isso, Crisóstomo exorta, tanto a homens, como a mulheres e crianças pequenas para se acostumarem em cantá-los, a fim de que esta possa ser uma espécie de meditação para associar-se na companhia dos anjos.

 

CANTANDO COM COMPREENSÃO NECESSÁRIA

 

Quanto ao restante, é necessário lembrar o que São Paulo disse: os cânticos espirituais não podem ser bem cantados se não fluir do coração. Mas, o coração requer inteligência. E nisso (afirma Santo Agostinho) está a diferença entre o canto dos homens e o dos pássaros. Para um sabiá, um rouxinol e um papagaio; pode ser fácil cantar bem; mas será sem entendimento. Contudo, a dádiva única do homem é cantar sabendo o que está cantando. Depois da inteligência deve-se seguir o coração e as afeições, algo que é impossível de ser feito exceto se tivermos o hino impresso em nossa memória, a fim de nunca deixar de cantar. Por estas razões e por essa causa, além do restante que foi mencionado, este presente livro, deve ser uma recomendação singular para cada um que deseja se alegrar dignamente e de acordo com Deus, para seu próprio bem-estar e benefício de seu próximo; e, assim, seja necessário e fortemente recomendado por mim, visto que possui seu devido valor e apreço. Não obstante, que o mundo possa ser tão bem aconselhado, que no lugar de canções em parte vãs e frívolas, em parte estúpidas e enfadonhas, em parte obscenas e desprezíveis, e, consequentemente, sendo malignas e nocivas aos que delas têm utilizado até agora, possam doravante se acostumarem ao canto destes celestiais e divinos hinos em companhia do bom rei Davi. A melodia adotada para ser entoada, parece-me melhor, que seja moderada de maneira que represente a solenidade e a majestosidade apropriados ao tema, e que, de acordo com o que já foi dito, seja apropriado para cantar na Igreja. João Calvino, Genebra, 10 de junho de 1543.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

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