Prefácio Ao Saltério de Genebra de 1543 / Por João Calvino.
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
PREFÁCIO AO SALTÉRIO DE GENEBRA
Pelo Ilustre Reformador:
João Calvino [1543].
No
cristianismo é algo imprescindível, e um dos mais necessários, que todos os
fiéis observem e mantenham a comunhão com a Igreja em sua vizinhança,
frequentando as assembleias que são realizadas aos domingos e em outros dias,
para honrar e servir a Deus; também é conveniente e razoável que todos saibam e
ouçam o que é dito e feito no templo, para que frutifiquem e recebam edificação.
A COMPREENSÃO É ESSENCIAL
Nosso
Senhor não instituiu a ordem que devemos observar quando nos reunimos em seu
nome apenas para nos entreter neste mundo, observando e se deleitando nisso;
antes, no entanto, ele desejava que nisso houvesse benefício para todo o seu
povo; como São Paulo testemunha, ordenando que tudo o que é feito na Igreja
seja direcionado para a edificação comum de todos, e isso o seu servo não teria
ordenado se não tivesse sido a intenção do Mestre. Mas, isso não pode ser feito
a menos que sejamos instruídos a ter entendimento de tudo o que foi ordenado
para o nosso proveito. Porque dizer que somos capazes de ter devoção, seja em
orações ou cerimônias, sem nada entender deles, por mais que isso seja
comumente aceito, isso é uma grande zombaria. Esta boa afeição por Deus não
deve ser uma coisa nem morta e nem animalesca, pelo contrário, deve ser um
movimento vivo, procedente do Espírito Santo, quando o coração é
verdadeiramente tocado e a compreensão iluminada. E, de fato, se alguém fosse
capaz de ser edificado apenas pelas coisas que observa, sem conhecimento do que
significam, São Paulo não proibiria tão rigorosamente o falar em uma língua
desconhecida, e ele não usaria esse raciocínio, de que não há edificação a menos
que haja uma doutrina. Contudo, se realmente queremos utilizar na igreja e
honrar as ordenanças sagradas de nosso Senhor, a primeira coisa é saber o que
elas contêm, o que elas significam e querem dizer, e para qual finalidade, a
fim de que seu uso possa ser útil e salutar e, consequentemente, corretamente
dirigido.
ELEMENTOS NA ADORAÇÃO
Agora,
há brevemente três coisas que nosso Senhor nos ordenou a observar em nossas
assembleias espirituais, a saber: a pregação de Sua Palavra, orações públicas e
solenes, e a administração dos sacramentos. Abstenho-me de falar de sermões neste
momento, porque não há dúvida sobre eles. Mencionando as outras partes que
restam, temos o mandamento expresso do Espírito Santo de que as orações devem
ser feitas em uma linguagem comumente conhecida pelo povo; e o Apóstolo disse
que as pessoas não devem responder Amém às orações que forem feitas em línguas
estranhas. Não obstante, isso ocorre porque as orações devem ser feitas
nominalmente e por todas as pessoas, devendo cada um participar. Assim, há um
grande desvario por parte daqueles que introduziram a língua latina na Igreja,
que geralmente não é compreendida. E não há nem perspicácia, nem sofisma que
possam desculpá-los, porque esta prática é perversa e desagradável a Deus. Além
disso, não há razão para supor que Deus ache agradável algo que vai diretamente
contra sua vontade, e, por assim dizer, a despeito dEle. E assim nada o
desagrada mais do que fazerem o que Ele proibiu e vangloriar-se desta rebelião
como se fosse algo santo e muito louvável.
SACRAMENTOS UNIDOS COM
DOUTRINA
Quanto
aos sacramentos, se olharmos minuciosamente sua natureza, reconheceremos que é
um costume perverso não os celebrar de tal maneira que as pessoas além de
observarem, possam entender os mistérios que estão ali contidos. Porque se são
palavras visíveis (como disse Santo Agostinho) é necessário que haja não só um
espetáculo exterior, mas também que a doutrina seja unida com ele para dar-lhe
compreensão. E também o nosso Senhor em os instituindo demonstrou bem isso:
porque ele diz que estes são testemunhos da aliança que ele fez conosco, e que
ele confirmou por sua morte. É necessário, portanto, dar-lhes o seu
significado, de maneira que possamos conhecer e compreender o que Ele disse;
caso contrário, seria em vão que o nosso Senhor tenha aberto a boca para falar,
se ele não tivesse ao seu redor ouvidos para ouvir.
E
assim não há necessidade de uma longa disputa sobre isso. E quando o assunto é
examinado com bom senso, não há ninguém que não confesse que é uma pura
apresentação de circo para divertir as pessoas com símbolos que não têm
significado algum. Portanto, é fácil ver que alguém profana os Sacramentos de
Jesus Cristo, administrando-os para que as pessoas não entendam de forma alguma
as palavras que estão sendo ditas sobre eles. E, de fato, pode-se ver as
superstições que surgem de tal prática. Porque é comumente considerado que a
consagração, por exemplo, da água para o batismo, ou do pão e vinho da Ceia de
Nosso Senhor, é como uma espécie de encantamento; ou seja, quando se expira
solenemente e pronuncia com a boca as palavras, as criaturas incapazes de
compreender pelos sentidos, sentem o poder, muito embora os homens não entendam
nada.
Mas
a verdadeira consagração é a que se faz através da palavra de fé, quando é declarada
e recebida, como Santo Agostinho disse: O que está expressamente contido nas
palavras de Jesus Cristo. Porque ele não disse ao pão que é o seu corpo: em vez
disso, ele dirigiu a palavra à congregação dos fiéis, dizendo, tomai, comei, e
assim por diante. Se quisermos, portanto, celebrar verdadeiramente este
Sacramento, é necessário que tenhamos a doutrina, por meio da qual o
significado do sacramento seja declarado a nós. Isso pode parecer muito
estranho àqueles que não estão acostumados a isso, como acontece com todas as
coisas novas; mas é muito razoável se formos discípulos de Jesus Cristo
preferir suas instituições ao nosso costume.
E
o que ele instituiu desde o início não deve parecer novo para nós. Se isso
ainda for incapaz de penetrar no entendimento de alguém, é necessário que
oremos a Deus para que se agrade em iluminar os ignorantes, para fazê-los
compreender o quanto mais sábio é que todos os homens da terra devam aprender a
não corrigir-se por meio de seus próprios sentidos, nem pela insensatez de seus
líderes que são cegos. No entanto, para o uso de nossa Igreja, pareceu-nos bom
tornar público a fórmula escrita dessas orações e sacramentos, a fim de que
cada um possa reconhecer o que ouve, aquilo que é dito e feito na assembleia
cristã. Não obstante, haverá proveito deste livro, não somente para o povo
desta Igreja, mas também a todos aqueles que desejam saber o que os fiéis devem
observar e cumprir quando se reunirem em nome de Cristo.
DOIS TIPOS DE ORAÇÕES
Reunimos,
assim, um resumo da forma de celebrar os sacramentos e de santificar o
casamento; igualmente reunimos as orações e louvores que usamos. Falaremos mais
tarde dos Sacramentos. Quanto às orações públicas, existem dois tipos: as que
são expressas apenas em palavras e as que são cantadas. E isso não é algo
inventado há pouco tempo. Desde os primórdios da Igreja, isso tem sido assim,
como aparece na história. E mesmo São Paulo fala não só de orar com palavras,
mas também de cantar. E, na verdade, sabemos pela experiência que o canto tem grande
força e vigor para mover e inflamar os corações dos homens para invocar e
louvar a Deus com um zelo mais intenso e fervoroso. Deve-se cuidar para que a
música não seja nem superficial nem fútil; mas que tenha importância e seja
majestosa (como diz Santo Agostinho), e, também, há uma grande diferença entre
a música que se faz para entreter os homens à mesa e em suas casas, e os Salmos
que são cantados na Igreja na presença de Deus e seus anjos. Mas, quando alguém
deseja julgar corretamente a forma que está aqui apresentada, esperamos que ela
seja considerada santa e pura, vendo que ela é simplesmente direcionada para a
edificação da qual falamos.
EXPRESSÃO ATRAVÉS DO CANTO
E,
no entanto, a prática do canto pode estender-se mais amplamente; nas casas e
nos campos é mesmo uma inspiração para nós, por assim dizer, um instrumento de
louvor a Deus, para elevar nossos corações a Ele, para nos consolar meditando
sobre sua virtude, bondade, sabedoria e justiça; isso é mais necessário do que
se possa dizer. Em primeiro lugar, não é sem motivo que o Espírito Santo nos
exorta com tanto cuidado ao longo das Escrituras Sagradas a regozijar-nos em
Deus e que toda a nossa alegria deva estar total e verdadeiramente direcionada
a esse fim, porque ele sabe o quanto estamos inclinados a regozijar-nos na
vaidade. Nossa natureza sempre nos atrai
e nos induz a buscar todos os meios de alegria tola e cruel; mas, pelo
contrário, nosso Senhor, nos desvia disso e nos retira das tentações da carne e
do mundo, apresentando todos os meios possíveis para nos ocupar daquela alegria
espiritual que ele tanto nos recomenda.
IMPORTÂNCIA DA MÚSICA
Agora,
entre outras coisas que são adequadas para restaurar o homem e dar-lhe deleite,
a música é a primeira, ou uma das principais; e é necessário que pensemos que é
um dom de Deus designado para esse uso. Além disso, no entanto, devemos ser
muito cuidadosos para não abusar desse dom, com receio de maculá-lo e
contaminá-lo, para não converter em condenação aquilo que foi concedido para
nosso benefício e uso. Se não houvesse outra consideração além dessa,
deveríamos realmente moderar o uso da música, para fazê-la servir somente as
coisas honradas; para que não dê oportunidade às paixões e à dissolução, fazendo-nos
agir irracionalmente em prazeres desordenados, esse dom não deve ser transformado
em instrumento de lascívia ou de qualquer outra atitude vergonhosa.
O PODER DA MÚSICA:
Há
de ser considerado ainda que: não existe nada mais eficaz para mudar ou dobrar
a disposição moral dos homens [do que a música], como Platão
prudentemente a considerou. E, de fato, descobrimos pela experiência que ela
tem um poder sagrado e extraordinário para mover corações de uma forma ou de
outra. Por conseguinte, devemos ser ainda mais diligentes em sua regulamentação
de tal forma que seja benéfica para nós e de forma alguma seja nociva. Por esta
razão, os antigos doutores da Igreja frequentemente exortavam sobre isso, as
pessoas de seu tempo eram viciadas em canções desonestas e desavergonhadas, não
sem motivo se referiam a elas como veneno mortal e satânico, por corromper o mundo.
Ademais, ao falar agora de música, eu entendo duas partes, a saber: primeiro a
letra, o tema ou conteúdo; em segundo a canção, ou a melodia. É verdade que
toda palavra nociva (como disse São Paulo) perverte os bons costumes, mas
quando há melodia com ela, ela perfura o coração muito mais fortemente, e entra
nele; da mesma maneira que através de um funil, o vinho é derramado no vaso,
também o veneno e a corrupção são destilados nas profundezas do coração pela
melodia.
PORQUE A ESCOLHA DOS SALMOS
E
o que deve ser feito? É ter canções não só dignas, mas também santas, que serão
como estímulos para nos incitar a orar e louvar a Deus, e meditar sobre suas
obras, a fim de amá-lo, temê-lo, honrá-lo e glorificá-lo. Além disso, o que
Santo Agostinho disse é verdade, que ninguém é capaz de cantar coisas dignas de
Deus, exceto as que dEle recebeu. Portanto, quando tivermos examinado
minuciosamente e pesquisado em todos os lugares, não encontraremos melhores
cânticos nem mais adequados para esse propósito do que os Salmos de Davi, que o
Espírito Santo proferiu e realizou através dele. Além disso, quando os
cantamos, temos a certeza de que Deus coloca esses em nossos lábios, como se
estivesse cantando em nós para exaltar sua glória. Por isso, Crisóstomo exorta,
tanto a homens, como a mulheres e crianças pequenas para se acostumarem em
cantá-los, a fim de que esta possa ser uma espécie de meditação para
associar-se na companhia dos anjos.
CANTANDO COM COMPREENSÃO
NECESSÁRIA
Quanto ao restante, é necessário lembrar o que São Paulo disse: os cânticos espirituais não podem ser bem cantados se não fluir do coração. Mas, o coração requer inteligência. E nisso (afirma Santo Agostinho) está a diferença entre o canto dos homens e o dos pássaros. Para um sabiá, um rouxinol e um papagaio; pode ser fácil cantar bem; mas será sem entendimento. Contudo, a dádiva única do homem é cantar sabendo o que está cantando. Depois da inteligência deve-se seguir o coração e as afeições, algo que é impossível de ser feito exceto se tivermos o hino impresso em nossa memória, a fim de nunca deixar de cantar. Por estas razões e por essa causa, além do restante que foi mencionado, este presente livro, deve ser uma recomendação singular para cada um que deseja se alegrar dignamente e de acordo com Deus, para seu próprio bem-estar e benefício de seu próximo; e, assim, seja necessário e fortemente recomendado por mim, visto que possui seu devido valor e apreço. Não obstante, que o mundo possa ser tão bem aconselhado, que no lugar de canções em parte vãs e frívolas, em parte estúpidas e enfadonhas, em parte obscenas e desprezíveis, e, consequentemente, sendo malignas e nocivas aos que delas têm utilizado até agora, possam doravante se acostumarem ao canto destes celestiais e divinos hinos em companhia do bom rei Davi. A melodia adotada para ser entoada, parece-me melhor, que seja moderada de maneira que represente a solenidade e a majestosidade apropriados ao tema, e que, de acordo com o que já foi dito, seja apropriado para cantar na Igreja. João Calvino, Genebra, 10 de junho de 1543.
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
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