sexta-feira, 19 de agosto de 2022

 

A Natureza do Culto Cristão - Rev. Charles Dent Bell, M.A. 

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

The Feast of the Rejoicing of the Law at the Synagogue in Leghorn, por Solomon Alexander Hart - Itália, 1850.

Cultuar é um instinto religioso. É mais impulso que dever; é mais necessidade que obrigação. Quando Adão estava no Paraíso, sua adoração a Deus era perfeita, porém, quando caiu em pecado, seu culto se corrompeu. Já não havia mais a mesma comunhão livre e aberta com Deus; não havia mais a reverência e o amor a vibrarem em êxtase de adoração. Com o passar do tempo, o homem esqueceu-se completamente de Deus. O instinto de cultuar levou o homem a prestar culto à criatura e a se prostrar diante de coisas materiais, com as quais ele passou a se relacionar pelos signos da oração e do louvor, e às quais passou a oferecer sacrifícios com o intuito de conseguir perdão e favores.

Uma indesculpável ignorância sobre Deus - “Eles não se importaram de ter conhecimento de Deus”. Isso levou a humanidade a mais grosseira idolatria, pois o instinto religioso sobrevive, porém, aquilo que originalmente era destinado à salvação do homem tornou-se motivo para ser condenado. Os hebreus estavam sozinhos na espiritualidade de seu culto. Primeiro tiveram um tabernáculo, depois um Templo; em nenhum dos dois havia lugar para os ídolos, pois o uso de imagens era totalmente proibido a serviço da religião. É verdade que, para um propósito sábio, Deus deu a esse povo um cerimonial imponente e um ritual elaborado, visando ensiná-lo, por meio da linguagem do símbolo e do signo, a respeito de certas verdades espirituais que lhes dizia respeito. A primeira aliança era muito bela aos sentidos e cheia de pompa exterior. As vestes dos sumos sacerdotes eram ricas e esplêndidas; os altares eram de ouro puro ou latão fino; as cortinas do santuário levavam as cores azul, púrpura e carmesim, além de pesados bordados forrados; havia a fragrância do incenso; havia os acordes da música melodiosa; havia forma, cor e cheiro. Mas, qualquer que tenha sido a pompa da adoração levítica, seu objetivo certamente não era impressionar os sentidos da nação inteira com uma exibição imponente.

 

O ritual dos hebreus foi confinado a uma única cidade da Terra Santa, era realizado em um único templo, e havia apenas um homem - o Sumo Sacerdote - vestido com roupas cheias de glória e beleza, as quais brilhavam devido as pedras preciosas. A maioria das pessoas raramente olhava para os requintados adornos, ou participava das lindas cerimônias da Casa do Senhor. E mesmo aqueles que, vivendo em Jerusalém, tinham acesso constante ao Templo, nunca penetravam além do pátio externo, de modo que nada viam além do altar de bronze e da pia de latão. Apenas os sacerdotes podiam entrar no lugar sagrado onde ficava o candelabro de ouro, a mesa dos pães e o incenso queimando; no santuário interior - o Santo dos Santos - somente o Sumo Sacerdote foi autorizado a ir, e isso apenas uma vez por ano. Nenhum olho, a não ser o dele, podia contemplar a arca da aliança, o propiciatório, o querubim, a Shekinah; e apenas ele contemplava a terrível cerimônia da aspersão do sangue expiatório. De modo que aqueles que defendem um culto sensorial – um culto voltado para os sentidos naturais - não encontram precedentes no cerimonial, divinamente estabelecido, dos judeus. Todavia, mesmo o sistema levítico para o culto, que em muitos de seus aspectos pretendia proteger o povo da idolatria e inspirar na mente das pessoas ideias espirituais, estava, por natureza, sujeito a perversão e superstição. Os homens transformaram o simbolismo da lei em farisaísmo; preferiram a letra ao espírito; escreveram os preceitos na testa e não no coração; pensavam mais nas pedras do Templo e em sua beleza e esplendor do que Naquele que habitava entre os querubins, atrás do véu impenetrável.


Dessa forma o sistema religioso dos hebreus “coisa alguma aperfeiçoou”. Ele era imperfeito. Era sombra, não a realidade; escravidão, não liberdade; infância, não maturidade. Assim, gradualmente se corrompeu; "se envelhece, perto está de acabar". A mesma mão divina que criou o templo, moldou o santuário e pendurou a cortina, também rasgou o véu em dois. Aquele que era maior do que o Templo pronunciou sua sentença com estas palavras: “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”. Essas palavras marcam o contraste entre a adoração do Antigo Testamento e a adoração do Novo. Nosso Senhor não quis dizer a adoração dos antigos não fosse verdadeira, ou que Ele tenha se satisfeito com um culto falso, e muito menos que os sacerdotes, profetas, reis e homens santos da antiguidade tenham depositado suas esperanças na letra que mata, “tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela”. O que Deus é agora, Ele sempre foi. A adoração que Sua Natureza requer agora, sempre exigiu. Mas o sistema judaico enfatizava a santidade de determinados lugares e pessoas, a obrigatoriedade de sacrifícios diários, semanais e anuais, e as formalidades de um elaborado cerimonial. Isso deve ser deixado em seu devido lugar, como tendo servido ao fim para o qual foi estabelecido. Agora, um cerimonial externo não deve ser colocado entre o homem e Deus. A adoração do homem "ao Alto e o Sublime, que habita na eternidade", não deve mais ser dogmaticamente atrelada a uma elaborada forma de culto.

 

O verdadeiro sentido da adoração, marcado por fé, esperança e a alegria da alma em Deus, deve ser claro e plenamente reconhecido. “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito” - não com um aparato litúrgico sensorial, rudimentar e imperfeito -; “e em verdade”, não cheio de sombras e tipologias, como o estabelecido sob a Lei mosaica, ou como uma adoração meramente exterior. Esta declaração de nosso Senhor sobre como a adoração cristã deve ser, nos apresenta um argumento em favor da simplicidade do Ritual Cristão. Nada me parece mais anti-bíblico do que apelar a qualquer precedente judaico para a introdução, no culto cristão, de um cerimonial imponente e um simbolismo exacerbado. E nada pode ser tão mais anti-filosófico; pois o Ritual da antiga dispensação era apenas uma parte de um sistema religioso nacional e temporário, e que não estava baseado sobre axiomas que permitem a relação entre a alma do Homem e o “Pai dos espíritos. Isto é verdadeiro sobre o Ritual e também sobre o Templo. Uma ideia especial de sacralidade estava ligada àquele nobre e belo Templo que foi construído por ordem de Deus, e cujas várias partes foram construídas após Suas instruções expressas. Lembrem-se de como foi descrito pelos judeus:

 

“A habitação da tua casa e o lugar onde permanece a tua glória”. A promessa divina a Salomão foi: “Escolhi e santifiquei esta casa, para que o meu nome esteja nela perpetuamente; e nela estarão fixos os meus olhos e o meu coração todos os dias”. Desse modo, a proximidade de Deus para com o Seu povo foi fortemente afirmada pela existência de um único Templo autorizado, e Sua presença com Israel assegurada pela Sua Divina condescendência em aceitar uma estrutura material como Sua morada. Contudo, é evidente que tal arranjo não estava livre de riscos. Ele tendia a obscurecer a espiritualidade e a infinitude da natureza divina. Parecia limitar a Deidade. Os homens mais profundamente devotos perceberam a presença de Deus em Jerusalém, e mais claramente sentiram a ausência do consolo do poder de Deus quando o acesso ao Templo lhes era negado. Estar longe do Templo tinha sabor de estar apartado de Deus; portanto, embora a manifestação graciosa da presença Divina no Templo fosse quase necessária para o pensamento religioso e para a vida do povo judeu, chegou a hora em que era conveniente que Deus não fosse mais adorado apenas em Jerusalém, ou visto como que morando em um santuário material, mas, sim, ser conhecido como Aquele cujo Templo é o mundo, e cujo santuário é todo coração regenerado. Acredito que seja contrário a plenitude do espírito da dispensação cristã supor que Deus esteja mais próximo de nós em um lugar do que em outro, ou pensar que Ele confere santidade peculiar a meras estruturas materiais. A presença especial de Deus é prometida, agora, não a lugares específicos, mas a pessoas específicas. “A casa do Senhor é o seu povo.”

 

Uma casa construída de pedras vivas: uma habitação espiritual para um habitante espiritual. “Sois o templo de Deus”, como Deus disse: “E meu tabernáculo estará com eles, e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo”. Constroem-se casas para o culto divino, mas elas não pretendem tomar o lugar do Templo; nem são em qualquer sentido como o Templo. Nenhuma parte do edifício é mais sagrada que outra. A consagração de uma porção do edifício pertence ao todo. Se, de fato, nós consideramos o ministério cristão como um ofício a ser exercido por uma ordem sacerdotal de homens que, como sacerdotes, devem oferecer sacrifícios e mediarem o povo e Deus, então deveríamos ter um lugar sagrado, cercado de zelosos cuidados e dedicado como uma capela-mor ou sacrário, para uso especial. Se concebêssemos Cristo como local e substancialmente presente sob os elementos consagrados do pão e do vinho, deveríamos ter um altar que, por sua materialidade, sua posição e sua forma, seria um testemunho perpétuo do terrível mistério que sobre ele se desenrola. Porém, o Novo Testamento condena tais ideias e, a Igreja da Inglaterra fez ouvir na Reforma o seu protesto contra elas, e seus mártires selaram esse protesto com sangue. O próprio Cristo é agora nosso único Sumo Sacerdote, e cada um de nós tem acesso direto a Deus por meio d’Ele. Sua presença não está no pão consagrado; mas nas almas regeneradas. Todo crente como membro de Seu corpo pertence a um Sacerdócio Real, e a promessa de Cristo nos assegura uma forma mais sublime da Presença Divina do que aquela que foi conferida pelo Shekinah nos tempos antigos - “Não sabeis que sois templo do Espírito Santo, e o Espírito de Deus habita em vós?”.

 

E, pela mesma razão pela qual o Espírito de Deus está conosco, e em certo sentido que não estava com a  Igreja da antiga dispensação; pela mesma razão pela qual um relacionamento mais próximo e verdadeiro com Ele é concedido sob a atual aliança, muito mais do que que foi concedida sob a primeira; pela mesma razão pela qual uma adoração superior é possível para nós e despojada de tudo que era temporário e simbólico na velha dispensação, é que nos gloriamos em um culto que é espiritual e não sensorial, pois somos livres para “adorar a Deus em espírito e em verdade”. Atualmente, o espírito que está influenciando o pensamento religioso busca o passado ao invés de avançar para o futuro, e é preciso recordar que existe uma glória maior do que qualquer que tenha aquilo que é exterior e visível. “A filha do rei é toda ilustre lá dentro”.  Seu “vestido” pode ser “entretecido de ouro”, sua veste cheia de “bordados”, mas nada disso se compara aos seus ornamentos mais importantes; aquilo que a torna realmente gloriosa é a fé, a esperança e o amor, que a conduzirá a um mundo onde o que é acidental no culto passará – a cerimônia, o sacramento e o símbolo; onde até mesmo o Templo desaparecerá; onde nós “não mais conheceremos em parte, mas conheceremos como somos conhecidos”.


Não é este movimento algo retrógrado ao conduzir do Evangelho para a Lei, do ministério do Espírito para o ministério da morte, um retorno às sombras e aos tipos, em vez de seguir adiante na liberdade oferecida pelo próprio Cristo, “a liberdade para qual Cristo nos libertou?” Por fim, observo que a própria simplicidade do culto cristão é uma prova de sua superioridade. Você pode estar inclinado a ter saudades ou lamentar a perda da magnificência do judaísmo - as esplêndidas vestimentas; as lâmpadas de ouro; o altar sempre aceso; a música; as prostrações em êxtase; o santuário misterioso; enfim, todo esse elaborado simbolismo que já passou.

 

 

De fato, para uma mente judaica, uma religião sem sacerdote, sem altar, sem sacrifício, sem templo - cujos locais de reunião eram os simples cenáculos, o pé da montanha, o deserto a beira mar- e cujos ritos mais solenes não envolviam nada mais que que a aspersão com água e o partir do pão, deva ter parecido pobre e pouco convidativa, desprovida de atrativos.

 

 

Mas, o esplendor material da antiga religião era apenas uma indicação de sua imperfeição, e a clareza cerimonial da nova é sua verdadeira dignidade e glória – justamente por isso. O judeu precisava de toda uma elaborada e formal cerimônia, com pessoas e objetos simbólicos para o ajudar a compreender a ideia de um Messias, de sua obra e missão; para o judeu, Cristo era um Ser de cuja pessoa, caráter e ofício ele tinha apenas percepções pouco definidas. Já para o cristão, Cristo não é um personagem vago em um futuro, nem sonho nebuloso. Ele foi “feito carne”.

 

Ele está diante de nós com toda a clareza de alguém com quem estamos familiarizados; e suas palavras, ações e obras são tão familiares a nós quanto as de nossos amigos e conhecidos. Portanto, para trazê-lo à nossa lembrança, nada é necessário além do mais simples e rudimentar: algumas gotas de água; um pouco de pão partido e uma taça de vinho. Repito, o caráter simples do culto cristão é uma indicação de avanço espiritual.

 

O ritual do judaísmo recorreu aos sentidos, os serviços do cristianismo apelam para o entendimento. Os judeus estavam em um estado de infância e, portanto, Deus deu-lhes um sistema de símbolos e exercícios adequados à sua compreensão como bebês. Mas a Igreja Cristã superou tais necessidades. Ela não precisa mais do livro ilustrado e da lição sobre o bê-á-bá. É verdade que o coração cristão exige tanto formas e ritos para encarnar a reverência, a gratidão, a devoção e o amor dos quais ele é interiormente consciente.

 

É verdade que a alma, em sua relação com um Pai invisível, ainda anseia por algum meio externo que dê expressão ao sentimento e traduza em atos exteriores ou palavras sua devoção a Deus. Mas aqui nada foi prescrito pela direção divina, como no judaísmo; tudo foi deixado para a direção da Igreja. Em graciosa condescendência às nossas necessidades, o Senhor nos deu os dois Sacramentos, mas com a mais plena liberdade em relação à sua administração, deixando todos os detalhes a serem estabelecidos de acordo com as diferentes necessidades do Seu povo, em diferentes lugares, épocas e circunstâncias.

 

A Igreja, em todos os tempos e lugares, sempre desejou, por causa de seu amor e necessidade de chorar, um canal de comunhão com seu Senhor invisível, e encontrou expressão para seus sentimentos nos atos da Oração Comum. O coração da Igreja já ansiava por dar voz à sua adoração e gratidão, e assim, pelo fluxo de sua devoção, descobriu o canal do Culto Comum. Todavia, a forma como a oração deve ser feita, ou o culto oferecido, é deixado a ser definido pela própria Igreja. Nosso gracioso Senhor, em Sua amorosa sabedoria, não prescreveu nenhuma forma necessária de discurso ou canção - nenhuma linguagem inflexível de adoração para Sua Igreja na terra. “Que tudo seja feito com decência e ordem”, contém toda a vontade divina sobre o assunto; detalhes são deixados ao instinto religioso e ao julgamento sóbrio do adorador. Hoje ouvimos muito sobre termos o dever de tornar nossos serviços épicos e atraentes, e que por meio de beleza para os olhos, e melodia para os ouvidos, agradáveis ao ímpio que, desse modo, será conquistado para a Casa de Oração. Respondo somente isto: daremos a Deus o nosso melhor. Deixe a beleza e o zelo continuarem sendo pilares da Sua Casa. Feiura não é santidade. Desleixo não é espiritualidade. Não seremos desculpados de nossa irreverência porque os outros são ritualistas e não espirituais. Não precisamos tornar a adoração frígida para torná-la devota. Tudo que se faz na Casa de Deus deve estar em harmonia com o propósito e missão que lhe foi designado. Nossos hinos, imbuídos de profundo sentimento devocional, devem ser ricos em expressão poética e se unirem à música da mais rica harmonia.

 

Mas o canto não deve ser o desempenho de um coro, mas a adoração e o louvor da congregação. E poucos abusos no culto público podem ser mais dolorosos para o coração desejoso de se unir ao serviço de Deus, do que uma assembleia de adoradores professos em silêncio, enquanto um coro se apresenta para o seu prazer. Isso pode, em algum sentido, ser chamado de adoração? E ainda assim, ai! tal zombaria chamada de adoração é incomum? Não é o coro muitas vezes transformado em palco para a exibição de artistas, e a Casa de Deus feita local de entretenimento? Se quisermos desfrutar de música - das harmonias artísticas dos grandes mestres da melodia - não é melhor que recorramos imediatamente às salas de concertos para onde vamos cantarolar e não cantar? Lembremo-nos de que, quando estamos na Casa de Oração, estamos no solo santo, estamos na presença do infinito e eterno Deus, que exige que o adoremos em “espírito e verdade”. Podemos tornar nossas igrejas atraentes devido adornos arquitetônicos, rituais, cerimônias e serviços musicais para os ímpios, homens que nunca se contentam, exceto com a concupiscência dos olhos e dos ouvidos, incapazes de se alegrarem e confessarem o quão miseráveis são se não estiverem embalados ao doce som da música.

 

Mas o que nós ganharíamos? O que eles ganhariam? O orgulho teria sido humilhado? A consciência despertada? Eles estariam mais próximos de Deus ao saírem de Sua casa do que quando nela adentraram? Será que depois disso nós não teríamos apenas os levado ao autoengano? Os enviaremos embora, satisfeitos por terem confundido seu prazer com a glória da arte e da melodia do canto religioso, satisfeitos por terem adorado a Deus com seus lábios enquanto o coração está longe Dele? O verdadeiro culto cristão - o que é isso? Oração e louvor no Espírito Santo. O Espírito Santo opera tão em nós para que nossos corações sejam elevados a Deus em veneração e adoração. Sua verdadeira inspiração vem d’Aquele que nos ensina a olhar para o benevolente rosto do nosso Pai no céu. A harpa que você coloca na janela enquanto recupera o fôlego, não pode vibrar até que o vento varra suas cordas. A simples respiração pode tocá-la gentilmente, apenas para despertar notas sussurrantes; ou, por outro lado, pode vir com o poder da tempestade e forçá-la a emitir notas sonoras de música. Em qualquer caso, deve haver um sopro sobre as cordas antes que possamos ter qualquer música. De modo semelhante, é preciso o sopro do Espírito na alma, antes que a verdadeira adoração seja possível.

 

O Espírito Santo deve mover a alma, sussurrando uma voz mansa e delicada, ou falando em tons mais altos ou ritmos mais acelerados; contudo, em qualquer dos casos, despertando o espírito de oração e, assim, nos capacitando a “adorar a Deus em espírito e em verdade”. Não há perigo maior para um ritual elaborado do que confundir emoção com sentimento religioso. A música de delicadas vozes, os tons marcantes do órgão, a fragrância do incenso, a rica luz que flui através dos vitais e lança um brilho suave sobre chão, pilar e corredor, tudo isso pode emocionar a alma e lhe dar prazer, fazê-la se derreter em ternura; e essas emoções facilmente excitadas podem ser confundidas com religião. Ai! Tais sentimentos têm a ver apenas com nossos sentidos e estão muito distantes de uma religião de consciência e convicção espirituais. Eles levam ao formalismo e autoengano. O mais descuidado e ateísta pode ser levado às lágrimas pelos encantos da música suave, ou ficar sem fôlego ao som tocante de palavras eloquentes. É possível ser sentimental sem ser piedoso. Oh, tomemos cuidado para não confundirmos o estranho fogo aceso pelo esplendor artístico, ou pelo brilho poético, com aquela chama pura e celestial da devoção que é iluminada no altar do coração pelo Espírito vivo do Deus vivo.

 

“Há um caminho que parece certo aos olhos do homem, mas o seu fim são os caminhos de morte”. Conhecemos a luta desesperada que, por algum tempo, tentou reintroduzir as doutrinas e os ritos do medievalismo em nossos cultos. Como se você devesse pensar que a vida e a morte eternas dependessem do ritual. Eu pergunto: o que o ritualismo pode fazer para balizar o objetivo que, suponho, ele propõe a si mesmo, ou seja, “a salvação das almas?”

 

O que podem as armas carnais do ritualismo - procissões, incenso, música e vestimentas? – fazer para conduzir pecadores das trevas para a luz? Foi por meio de armas como essas que o mundo foi conquistado do paganismo ao cristianismo? É por meio de tais armas que podemos vencer o pecado que nos assedia por todos os lados, ressuscitar os mortos, socorrer os que são tentados, salvar os que perecem?

 

Não são todas essas perguntas imensamente triviais - indescritivelmente triviais! - quando pensamos na infidelidade, no secularismo, no vício e no mundanismo que nos cercam por todos os lados, e contra os quais somos chamados a batalhar em nome de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo? E o que impediria o diabo zombeteiro da luxúria e do ódio, da embriaguez, do ceticismo e do crime, dizer em extremo desprezo a todas essas tentativas de exorcizá-lo, "Jesus eu conheço, a Paulo também, mas são vocês quem são?". Eu tenho procurado tratar este assunto de forma justa, sem nenhum desejo de trata-lo levianamente.

 

Todos nós sabemos muito bem que existem homens na Igreja – nela, sem serem dela - que buscam reintroduzir em seus cultos formas e cerimônias judaico-papistas e não protestantes em sua concepção, e cerimônias, paramentos e ornamentos, que são indecorosos para a gravidade, a pureza e a espiritualidade da religião cristã, e que foram varridos pelo sopro da Reforma, como que por um vento impetuoso. O "Culto Cristão" é espiritual e não sensorial: devocional, não dramático; racional, não ritualístico.

 

Mas, pelas práticas agora comuns em nossas igrejas, você pensaria que é justamente o contrário. Eu te dou mais um exemplo selecionado de muitos. À medida que a Sexta-feira Santa é reintroduzida, ano após ano, vemos nosso Senhor ressuscitado e exaltado tratado como se estivesse morto. O sino do funeral é tocado, a igreja é coberta de preto e “as três horas de agonia” é dramatizada. Esta é uma representação verdadeira da fé de um homem cristão? Isso é verdadeira adoração cristã? Certamente que não! "Cristo, morto, não morre mais: a morte não tem mais domínio sobre Ele". Devemos encorajar tal encenação infantil, teatral e supersticiosa, copiados que são da Igreja Romana? Eu digo que não! Eu nego que o Crucifixo é o emblema apropriado da religião cristã. É um Cristo vivo e não morto que adoramos! E qual será o fim desse crescimento do erro na doutrina e na prática em nossa Igreja? As “cisternas partidas” de uma falsa adoração são reparadas enquanto a fonte viva é abandonada? O ídolo da superstição será restaurado ao seu pedestal, enquanto Deus é desonrado e esquecido?

 

O véu da separação deve ser novamente posto entre o homem e o propiciatório? Deve o “novo e vivo caminho” que nos foi aberto ser fechado novamente, e o acesso direto a Deus, nosso Pai Celestial, proibido? Teremos algum mediador terreno para se intrometer entre nós e aquele Grande Sumo Sacerdote, que com amor em Seu coração, ternura em Seus olhos e urgência em Sua voz, está com os braços estendidos e prontos para receber a todos em Seu peito, clamando: vinde a mim e eu te darei descanso?

 

Não! Digo que mil vezes não”! “Nem ainda por uma hora” nos sujeitaremos a tentativa de roubar nossa liberdade espiritual. Com a ajuda de Deus, devemos tomar cuidado para que nosso candelabro não seja removido e nossa lâmpada apagada. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para impedir que a história de nossa Igreja seja lida na história das sete Igrejas da Ásia, agora arruinadas, sem teto, prostradas, desertas e caídas?

 

Foi um ditado de Lutero que “a graça de Deus é como uma chuva de verão que passa”. Será que a chuva vai embora e nos deixará estéreis, ressecados e infrutíferos? Não estou disposto a pensar assim. Eu confesso que às vezes temo, mas minha esperança é em Deus. O que quer que pensemos sobre isso, há um dever muito solene que nos vincula como cristãos e ministros individuais: não devemos sancionar de forma alguma, ou darmos preferência, àquilo que acreditamos ser errado contra nossa fé cristã e nossa igreja. Sim, e deixe-nos como Igreja, atentarmos à mensagem ao anjo da Igreja em Sardes:

 

“Sê vigilante, e confirma os restantes, que estavam para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus. Lembra-te, pois, do que tens recebido e ouvido, e guarda-o, e arrepende-te. E, se não vigiares, virei sobre ti como um ladrão, e não saberás a que hora sobre ti virei”. Estas palavras são aplicáveis ainda hoje. Elas vêm zumbindo através dos séculos, e é como uma voz solene e urgente para nós nestes últimos dias, “sobre quem o fim do mundo está vindo”. Vamos ouvi-los, e ser advertidos, pois “o julgamento deve começar pela Casa de Deus”. Portanto, “aquele que tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas”.

 

 

Este artigo foi escrito pelo Reverendo Charles Dent Bell, M. A., Hon. Canon de Carlisle e Reitor de Cheltenham, maio de 1876. Lido na Conferência da Church Association, realizada no Willis’s Rooms, King Street, St James, em 10 de maio de 1876.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

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