Carta de João Calvino ao Lorde Protetor da Inglaterra Edward Seymour.
AO LORDE PROTETOR DA INGLATERRA EDWARD SEYMOUR, 1º DUQUE DE SOMERSET.
Edward Seymour, 1º duque de Somerset, nomeado o Protetor, também chamado (1523-36) Sir Edward Seymour, ou (1536-37) Visconde Beauchamp de Hache, ou (1537-47) conde de Hertford, (nascido c. 1500 / 06 - morreu em 22 de janeiro de 1552, em Londres), o Protetor da Inglaterra durante parte da menoridade do rei Eduardo VI (reinou entre 1547 e 1553).
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
O CONTEXTO HISTÓRICO DA CARTA:
Após
a morte de Henrique VIII (28 de janeiro de 1547), Seymour foi nomeado protetor
pelo conselho de regência que Henrique havia nomeado para dirigir o governo do
rei Eduardo VI, de nove anos de idade. Ele logo se tornou o duque de Somerset
(1547) e por dois anos e meio atuou em tudo como monarca, menos no nome.
Somerset
tentou ajudar os pobres das áreas rurais proibindo as expropriações para o gado
- isto é, a tomada de terras comuns cultiváveis pelas classes proprietárias para
uso como pastagens; e essa ação levou à sua queda. Os proprietários de terras frustraram
seus esforços; os camponeses desesperados se revoltaram em Norfolk sob a
liderança de Robert Kett; e em outubro de 1549 Somerset foi escorraçado do
poder e aprisionado por uma coalizão de Warwick e as classes proprietárias.
Quando esta coalizão ruiu, ele foi
libertado em fevereiro de 1550 e ostensivamente reconciliado com seu rival. Acredita-se
que a carta de Calvino chegou logo após sua libertação em 1550.
João Calvino Ao Senhor
Protetor Da Inglaterra Edward Seymour, 1º Duque De Somerset.
*(Data e local desconhecidos)*
Meu
senhor, é fato que demorei muito a escrever-te, não por falta de inclinação,
mas, abstive-me de fazê-lo, do que me arrependo, pelo receio de que, diante das
últimas dificuldades, minha carta pudesse causar-te algum novo aborrecimento.
Agradeço ao meu Deus por dar-me agora a oportunidade que tanto esperava. E não
sou o único que se regozija com a feliz questão de que Deus concedeu a ti o
livramento de tua aflição, mas igualmente todos os verdadeiros crentes que
desejam o avanço do reino de nosso Senhor Jesus Cristo; na medida em que eles
conhecem as dores e dificuldades que atravessaste, para que o evangelho pudesse
ser restaurado em toda a sua integridade e que todas as superstições pudessem ser
vencidas; e não duvido que estejas, com todas as tuas forças, pronto para fazer
o que é necessário. Tratando-se do senhor, meu Lorde, deves não só reconhecer a
bondade de Deus em estender a mão para tua libertação, mas deves também guardar
na memória a visitação divina, de modo que possas utilizar tudo isso para teu proveito.
Estou
ciente do pesar que possas sentir e de como podes ser tentado a vingar-se
contra aqueles que te causaram tamanho dano, querendo retribuir esse dano em
maior medida do que te foi causado; mas conheces a repreensão de São Paulo
sobre isto, a saber, que nós não temos que lutar contra carne e sangue, mas
contra os artifícios ocultos de nosso inimigo espiritual. Não devemos,
portanto, ser indiferentes com as responsabilidades dos homens, mas sim voltar
nossa atenção para Satanás, para resistir a todas as suas maquinações contra
nós. E como não há nenhuma dúvida de que ele foi o autor do mal infligido contra
ti, a fim de que, desta forma, o progresso do evangelho pudesse ser prejudicado
e tudo terminasse em confusão; destarte, meu senhor, esquecendo e perdoando os
erros daqueles que foram considerados teus inimigos, amando-os mesmo quando
eles buscarem sua destruição, aplique todas as tuas forças para repelir a
maldade daquele que fez uso dela contra ti. Esta nobreza de espírito não só
será aceitável a Deus, mas vai tornar-te mais amável diante dos homens. Não
tenho dúvidas de que darás a devida consideração a este assunto: se tua gentileza
se estender generosamente, tanto mais tenho certeza de que receberás
favoravelmente o que estou dizendo agora, sabendo que não tenho outro motivo
para dar-te tais exortações, exceto a consideração que tenho nutrido por tua
honra e bem-estar. E, de fato, é tão difícil essa virtude de superar as próprias
paixões, de modo a pagar o mal com o bem, que nunca é demais ser exortado para
esse fim, visto que o Senhor ordenou isto mais enfaticamente do que muitas
pessoas suponham.
É
necessário que tenhas em mente, meu senhor, o exemplo de José. Seria difícil encontrar
nos dias de hoje tal modelo de integridade, no entanto, percebendo que Deus
havia transformado para seu benefício todo o mal que haviam planejado contra
ele, resolveu mostrar-se para com seus irmãos, que o haviam perseguido, como um
servo da bondade de Deus. Esse triunfo será muito superior ao que Deus já te
conferiu, quando preservou e protegeu tanto a ti mesmo, quanto a tua propriedade
e tua honra. No entanto, meu senhor, deves também considerar que, se Deus achou
por bem humilhar-te por um breve tempo, ele não o fez sem motivo: por mais irrepreensível
que tenhas sido em relação aos homens, sabes que antes disso, diante do grande Juiz
celestial ninguém há que não se encontre culpado. Veja como os santos consideraram
os severos castigos de Deus, às vezes dobrando o pescoço e curvando a cabeça
debaixo da correção divina. Davi andou muito retamente, mas mesmo assim
reconheceu que foi bom para ele ter sido humilhado pela mão de Deus. Assim,
logo que percebamos que somos castigados de qualquer forma, é bom que façamos
uma análise de nós mesmos, para examinarmos completamente a nossa vida, para
descobrir os pecados que nos estão encobertos.
Pois,
sempre que uma grande prosperidade nos ofuscar os olhos, de modo que não
percebamos porque Deus está nos corrigindo, há certamente razão para reconhecer
que pertence a Ele o revelar dos nossos males interiores que de nós mesmos eram
desconhecidos; como o reverente respeito que deveríamos a um médico que melhor
sabe aplicar a cura, assim, deve ser com Deus, que age, não de acordo com as
nossas vontades, mas de acordo com o que sabe e julga como apropriado. Além
disso, ele faz às vezes o uso de um remédio preventivo, não querendo esperar
que sucumbamos à doença, mas combatendo-a previamente. Deus tem te colocado em
uma posição de alta dignidade, além de sua posição comum, tem feito grandes
coisas por teu intermédio, que, possivelmente, terá maior reconhecimento após a
tua morte, do que é agora valorizado em teu tempo de vida; e acima de tudo, fez
com que Seu Nome Santo fosse engrandecido através de ti. Mesmo as
personalidades mais virtuosas e excelentes estão em maior perigo, do que quaisquer
outras pessoas, de serem tentadas a esquecer disso. Sabes, meu senhor, o que é
registrado do santo rei Ezequias, que depois de ter realizado ações memoráveis,
tanto o bem pela religião e serviço de Deus, quanto para o proveito comum de
sua nação, o seu coração se vangloriou.
Se
Deus escolheu te livrar disso, é um favor especial que ele fez a ti, mesmo que
ele não tivesse outro motivo, além de ser glorificado em sua libertação, talvez
se fizesse conhecido a ti e a toda a humanidade através de tua pessoa,
reconhecido como um verdadeiro protetor de seu povo. Que isso seja o bastante
para ti. Resta-me dizer, meu senhor, que desde que Ele concedeu a ti supremacia
sobre teus inimigos, deves louvá-Lo por essa bênção, como é devidamente justo
fazê-lo. Ao termos o privilégio de sermos libertos de uma tão perigosa cilada,
devemos ser duplamente cuidadosos em exaltar e glorificar nosso gracioso Deus,
como se Ele tivesse nos concedido uma segunda vida. Não deves fazer nada menos
que exaltar com zelo o nome de Deus e restaurar a pureza da pregação de Seu
Evangelho; como sabes, meu senhor, nesta questão tão importante, mesmo que
façamos tudo que está ao nosso alcance, ainda estaremos falhando diante de tudo
que nos é requerido. Contudo, se Deus, unindo-se a ti novamente, pretende, por
estes meios, encorajar-te a cumprir teu dever melhor do que jamais fizeste
antes, esforça-te e aplica-te com todos os teus esforços ao avanço da obra
sagrada que Ele começou por ti, e eu não duvido que o faras; também estou
confiante de que, conhecendo o tipo de sentimento pelo qual sou conduzido a exortar-te,
receberás isto com gentileza, como costuma fazer. Quando a honra de Deus requer
este procedimento, é certo que ele cuidará de ti e de tua família, para
distribuir Suas graças abundantemente; ele te fará sentir o valor de Sua
bênção, pois sua promessa por nós nunca falhará, “Aqueles que me honram, honrarei”
[I Samuel 2.30].
É
verdade que aqueles que cumprem o seu dever da melhor forma são também
afligidos por muitos ataques, mas é suficiente que Deus esteja com eles para
libertá-los. Grande é o benefício de olhar para Deus e contentar-se em render-se
ao seu serviço; todavia, meu senhor, é uma grande consolação para ti ver o Rei
favoravelmente disposto a promover a restauração da Igreja, da pura doutrina e
de tudo mais; é uma virtude admirável nele que, com tão pouca idade, as
vaidades deste mundo não superem no governo de seu coração o temor a Deus e a
verdadeira religião, isso é uma bênção especial para o teu reino e, do mesmo
modo, uma grande satisfação e conforto para ti, que está a serviço da vontade e
dos desígnios do Rei Celestial, o Filho de Deus. Principalmente, meu senhor,
tendo me recomendado humildemente à tua boa graça, imploro ao nosso bondoso
Deus que, tendo-te em Seu santo cuidado, aumente em ti mais e mais os dons de
Seu Espírito Santo e os faça servir à Sua glória, para que possamos ter todos
os motivos para nos regozijar.
João Calvino.
Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
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