sábado, 20 de agosto de 2022

 

A Justificação É um Ato Forense; Dr. Charles Hodge.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

REMBRANDT VAN RIJN (LEIDEN 1606-AMSTERDAM 1669). Christ and St Mary Magdalene at the Tomb, Signed and dated 1638. 

O que significa a justificação forense e como ela é aplicada?

Os reformadores pretendiam através deste, em primeiro lugar, negar a doutrina romana da justificação subjetiva [1]. Ou seja, essa justificação consiste em um ato de Deus tornando o pecador subjetivamente santo. Os romanistas confundem ou unem justificação e santificação. Eles definem justificação como "a remissão de pecados e a incorporação de novos hábitos de graça". Por remissão de pecados, eles não querem dizer apenas o perdão, mas a remoção de toda a natureza de pecado da alma. A justificação, para eles, é, portanto, puramente subjetiva, consistindo na destruição do pecado e na incorporação [2] da santidade. Em oposição a essa doutrina, os reformadores afirmam que, por justificação, as Escrituras referem-se a algo diferente de santificação. Que os dois dons, embora inseparáveis, são distintos, e que a justificação, em vez de ser um ato eficiente que altera o caráter interior do pecador, é um ato declarativo, anunciando e determinando sua relação com a Lei e a justiça de Deus. Em segundo lugar, os Símbolos [3] da Reforma explicitamente nos ensinam que justificação não é simplesmente perdão e restauração. Inclui perdão, mas também inclui uma declaração de que o crente é justo ou reto aos olhos da Lei. Ele tem o direito de pleitear uma justiça que satisfaça completamente suas demandas.

 

E, portanto, em terceiro lugar, esses Símbolos ensinam afirmativamente que a justificação é um ato judicial ou forense, isto é, um ato de Deus como Juiz, procedendo de acordo com a Lei, declarando que o pecador é justo, isto é, que a lei não o condena mais, mas o absolve e declara que ele tem direito à vida eterna. Aqui, como em tantos outros casos, a ambiguidade das palavras é passível de criar constrangimento. A palavra grega dikaios e a palavra inglesa [como em português] justo têm dois sentidos distintos. Elas às vezes expressam caráter moral. Quando dizemos que Deus é justo, queremos dizer que Ele é perfeito. Ele está livre de qualquer imperfeição moral. Então, quando dizemos que um homem é justo, geralmente queremos dizer que ele é reto e honesto; que ele é e faz o que deveria ser feito.

 

Nesse sentido, a palavra expressa a relação que um homem mantém com a regra da conduta moral. Em outras ocasiões, porém, essas palavras não expressam o caráter moral, mas a relação que um homem mantém com a justiça. Nesse sentido, um homem é justificado em relação a quem a justiça é cumprida; ou contra quem a justiça não tem demanda. Pilatos disse: "Estou inocente do sangue deste justo" (Mat 27:24); isto é, dessa pessoa que está livre de culpa; livre de qualquer coisa que justifique sua condenação à morte. “Cristo também”, diz o apóstolo, “padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos” (1Pe 3:18). Veja Rm 2:13; Rm 5:19. "Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um, muitos serão feitos justos." Portanto, se consideramos a palavra justo no primeiro dos dois sentidos acima mencionados, quando este expressa o caráter moral, seria uma contradição dizer que Deus declara o pecador como justo.

 

Isso seria equivalente a dizer que Deus declara que o pecador não é pecador, que o perverso é bom, e que o ímpio é santo. Mas se entendermos a palavra no sentido em que as Escrituras a usam com tanta frequência, expressando uma relação com a justiça, então, quando Deus pronuncia o pecador como reto ou justo, Ele simplesmente declara que sua culpa é expiada [4], que a justiça é cumprida, que Ele tem a integridade que a justiça exige. É exatamente isso que Paulo diz, quando diz que Deus "justifica o ímpio" (Rm 4: 5). Deus não declara que o ímpio é piedoso; Ele declara que, apesar de sua pecaminosidade e indignidade, ele é aceito como justo com base no que Cristo fez por ele. Prova da Doutrina que acabamos de afirmar; Justificar não significa simplesmente perdoar, nem se tornar inerentemente justo ou provar-se bom.

 

Do uso das Escrituras:

 

1. No uso uniforme da palavra justificar nas Escrituras. Ela nunca é usada em nenhum desses sentidos, mas sempre apenas para declarar ou anunciar. Não é necessário citar passagens que comprovem uma utilização uniforme. Os poucos exemplos a seguir são suficientes. “Quando houver contenda entre alguns, e vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão.” (Dt. 25:1). “Porque não justificarei o ímpio” (Ex. 23:7). “Dos que justificam ao ímpio por suborno” (Is. 5:23). O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, tanto um como o outro são abomináveis ao Senhor” (Pv. 17:15).

 

“Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo” (Lc. 10:29). “Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens” (Lc. 16:15). “Mas a sabedoria é justificada por seus filhos.” (Mt. 11:19). “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei.” (Gl. 2:16). “Vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído.” (Gl. 5:4). Assim, diz-se que os homens justificam a Deus: “porque se justificava a si mesmo, mais do que a Deus” (Jó 32:2). “para que sejas justificado quando falares” (Sl. 51:4). E todo o povo que o ouviu e os publicanos, justificaram a Deus” (Lc. 7:29). A única passagem no Novo Testamento em que a palavra justo (Grego: Dikaioo) é usada em um sentido diferente é em Apocalipse 22:11: “e quem é justo, seja justificado ainda”. Mesmo que a leitura desta passagem fosse incontestável, esse único caso não teria força contra o uso estabelecido da palavra.

 

O uso desta palavra na vida comum é tão constante quanto o seu uso na Bíblia. A palavra sempre expressa um julgamento, seja da mente, como quando um homem justifica outro por sua conduta, ou oficialmente por um juiz. Se esse é o significado estabelecido da palavra, isto deveria resolver toda a controvérsia quanto à natureza da justificação. Somos obrigados a usar as palavras das Escrituras em seu verdadeiro sentido estabelecido. E, portanto, quando a Bíblia diz que Deus justifica o crente, não temos a liberdade de dizer que isso significa que Ele perdoa ou que Ele o santifica. Significa e pode apenas significar que Ele o declara justo.

 

Justificação o oposto da Condenação.

 

2. Isso é ainda mais evidente a partir da antítese [5] entre condenação e justificação. A condenação não é o oposto nem do perdão nem de restauração. Condenar é pronunciar-se culpado ou digno de punição. Justificar é declarar inocente, ou que a justiça não exige punição, ou que a pessoa em questão não pode ser justamente condenada. Quando, portanto, o apóstolo diz: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm. 8:1), ele declara que eles estão absolvidos da culpa; que a penalidade da lei não pode ser infligida a eles pela justiça. “Quem”, ele pergunta, “intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu” (8:33,34). Contra os eleitos em Cristo, nenhum fundamento de condenação pode ser apresentado. Deus os declara justos e, portanto, ninguém pode considerá-los culpados. Esta passagem é certamente decisiva contra a doutrina da justificação subjetiva de qualquer forma. Essa oposição entre condenação e justificação é familiar tanto nas Escrituras quanto na vida comum. “Se eu me justificar, a minha boca me condenará” (Jó 9:20). “E tu condenarias aquele que é justo e poderoso? ” (Jó 34:17). Se condenar não significa se tornar perverso, justificar não significa se tornar bom. E se a condenação é um [ato] judicial, também o é a justificação. Na condenação, é um juiz que pronuncia a sentença sobre o culpado. Na justificação, é um juiz que afirma ou declara a pessoa livre de culpa e com direito a ser tratada como uma pessoa justa.

 

Argumento sobre formas equivalentes de Expressão.

 

3. As formas de expressão usadas como equivalentes à palavra "justificar" determinam claramente a natureza do ato. Assim, Paulo fala “bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras.” (Rm. 4:6). Atribuir justiça não é perdoar; nem é santificar. Significa justificar, isto é, atribuir justiça. A forma negativa na qual a justificação é descrita é igualmente significativa. “Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, E cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.” (Rm. 4:7,8). Como "atribuir o pecado" não significa e não pode significar criar perversos; portanto, a afirmação negativa de “não atribuir pecado” não pode significar santificar. E como "atribuir o pecado" significa pôr o pecado em consideração e tratá-lo de acordo; então, justificar significa colocar a justiça em conta e tratá-la de acordo. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo... Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado” (João 3:17,18). Porquanto, “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida” (Rm. 5:18).

 

Foi um julgamento, uma sentença judicial, que veio sobre os homens pela ofensa de Adão, e é uma sentença judicial (justificação, Grego: Dikaiosis) que vem da justiça de Cristo, ou, como é dito no v. 16 do mesmo capítulo, foi um julgamento para condenação, uma sentença condenatória que veio por uma ofensa; e um presente gratuito para justificação, uma sentença de justificação gratuita de muitas ofensas. O texto não pode ser mais claro. Se uma sentença de condenação é um ato judicial, a justificação é um ato judicial também.

 

Argumento da Declaração da Doutrina.

 

4. O caráter judicial da justificação está incluído no modo em que a doutrina é apresentada na Bíblia. As Escrituras falam de Lei, de suas exigências, de seu castigo, de pecadores, como culpados no tribunal de Deus, no Dia do Julgamento. A pergunta é: "Como pode o homem ser tornado justo aos olhos de Deus?" A resposta a esta pergunta determina todo o método de salvação. A questão não é, como um homem pode se tornar santo? Mas, como ele pode se tornar justo? Como ele pode expiar as reivindicações que a justiça tem contra ele? É óbvio que, se não existe tal atributo como a justiça em Deus; se o que chamamos de justiça é apenas benevolência, então não há pertinência [6] nesta questão: não é necessário que o homem seja justo apenas para ser salvo. Não há reivindicações de justiça a serem cumpridas. Arrependimento é a única condição para se restaurar o favor de Deus. Ou qualquer declaração [7] didática ou a apresentação da desaprovação de Deus [8] abriria caminho para o perdão dos pecadores. Ou, se as exigências da justiça fossem facilmente cumpridas; se a obediência parcial, imperfeita e os castigos paternos, ou penitências auto infligidas, bastam para cumprir suas reivindicações, então o pecador não precisa ser justo aos olhos de Deus para ser salvo. Mas a alma humana sabe intuitivamente [9] que estes são refúgios de mentiras. Sabe que existe um atributo chamado justiça. Sabe que suas exigências são inexoráveis [10] porque são justas. Sabe que não pode ser salvo, a menos que seja justificado, e sabe que não pode ser declarado justo a menos que as exigências da justiça sejam plenamente cumpridas. Tais compreensões do mal, do pecado, e da justiça de Deus estão no fundamento de todas as falsas interpretações dessa grande doutrina.

 

O argumento do Apóstolo na epístola aos Romanos.

 

O apóstolo começa a discussão deste assunto assumindo que a justiça de Deus, seu propósito de punir todo pecado e exigir perfeita conformidade com sua lei, é revelada do Céu, isto é, revelada de tal maneira que nenhum homem, seja judeu ou gentio, possa negar (Rm 1:18). Os homens, mesmo os pagãos mais degradados, conhecem o justo julgamento de Deus de que aqueles que pecam são dignos da morte (1:32). Em seguida, ele prova que todos os homens são pecadores e, sendo pecadores, estão sob condenação. O mundo inteiro é "culpado diante de Deus" (3:19). A partir disso, ele deduz, como intuitivamente certo (porque está claramente incluído nas premissas), que nenhum ser que vive na carne pode ser justificado diante de Deus "pelas obras da lei", isto é, com base em seu próprio caráter e conduta. Sendo culpado, ele não pode ser declarado inocente ou justo. No raciocínio de Paulo, justificar é pronunciar justo. Dikaios é o oposto de hupodikos, isto é, justo é o oposto de culpado. Pronunciar-se culpado é condenar. Pronunciar-se justo, isto é, não culpado, é justificar. Se um homem nega a autoridade das Escrituras, é possível que ele possa negar que a justificação é um ato judicial. Mas parece impossível que alguém negue que isso esteja apresentado na Bíblia.

 

O Apóstolo, tendo ensinado que Deus é justo, isto é, que exige o cumprimento da justiça, e que os homens são pecadores e não podem proporcionar tal cumprimento, anuncia que tal justiça foi fornecida e é revelada no Evangelho. Não é a nossa própria justiça, que está na Lei, mas a justiça de Cristo, e, portanto, a justiça de Deus, em virtude da qual, e com base nisso, Deus pode ser justo e, no entanto, justificar o pecador que acredita em Cristo. Enquanto a Bíblia permanecer, isso deve permanecer como uma simples confirmação do que Paulo ensina sobre o método de salvação. Os homens podem contestar o que ele quer dizer, mas certamente é isso que ele diz.

 

Argumento sobre o fundamento da justificação.

 

5. A natureza da justificação é determinada pelo seu fundamento. De fato, é uma antecipação de outra parte do assunto, mas é mostrado aqui. Se a Bíblia ensina que o fundamento da justificação, a razão pela qual Deus nos redimi [11] da penalidade da Lei e nos aceita como justos aos Seus olhos, é algo que não cabe a nós, algo que não é feito por nós ou por cumprimento ou por experiências, então, isto mostra que a justificação não é subjetiva. Não consiste em uma infusão de justiça ou que a pessoa justificada se torna pessoalmente santa. Se a “causa formal” de nossa justificação é nossa bondade, somos justificados pelo que somos. A Bíblia, no entanto, ensina que nenhum homem que vive pode ser justificado pelo que ele é. Ele é condenado pelo que é e pelo que faz. Ele é justificado pelo que Cristo fez por ele.

 

Argumento da Imutabilidade da Lei.

 

6. A doutrina de que a justificação consiste simplesmente em perdão e em consequente restauração, supõem que a lei divina é imperfeita e mutável [12]. [Mas] a lei do Senhor é perfeita. E sendo perfeita, não pode ser desconsiderada. Não exige nada que não deva ser exigido. Não ameaça nada que não deva ser punido. Na verdade, é o seu próprio carrasco. Pecado é morte (Rm 8: 6). A justiça de Deus torna o castigo inseparável do pecado, assim como a vida é da santidade.

 

A penalidade da lei é imutável e não pode ser posta de lado tanto quanto o preceito [13]. Assim, em toda parte as Escrituras ensinam que, na justificação do pecador, não há abrandamento da punição. Não há como deixar de lado ou desconsiderar as exigências da lei. Somos livres da lei, não por sua revogação [14], mas por sua execução. (Gl 2:19). Somos livres da lei pelo corpo de Cristo (Rm. 7:4). Cristo, tendo tomado o nosso lugar, carregou nossos pecados em Seu próprio corpo sobre o madeiro (1Pe 2:24). A cédula [escrito de dívida] que estava contra nós, a tirou do meio de nós cravando-a na cruz (Colossenses 2:14).

 

Portanto, não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6:14). Tais representações são inconsistentes com a teoria que supõe que a lei possa ser dispensada; que a restauração dos pecadores ao favor e à comunhão de Deus não requer o cumprimento aos seus mandamentos; que o crente é perdoado e restaurado para ter comunhão com Deus, assim como um ladrão ou falsificador é perdoado e restaurado aos seus direitos civis por um executivo do governo humano. Isto é contra as Escrituras. Deus é justo em justificar o pecador. Ele age de acordo com a justiça.

 

Veremos que tudo nesta discussão gira em torno da questão:  Existe em Deus um atributo como justiça? Se a justiça é apenas "benevolência guiada pela sabedoria", então não há justificação. O que os cristãos evangélicos consideram é apenas perdão ou santificação. Mas se Deus, como ensinam as Escrituras e a consciência, é um Deus justo, tão imutável em sua justiça quanto em sua bondade e verdade, então, não pode haver remissão da punição do pecado, exceto pela expiação, e nenhuma justificação, exceto pelo cumprimento da justiça. Portanto, justificação deve ser um ato judicial, e não simplesmente perdão nem uma infusão da justiça. Essas doutrinas se sustentam. O que a Bíblia ensina sobre a justiça de Deus prova que justificação é uma declaração judicial de que a justiça é cumprida. E o que a Bíblia ensina sobre a natureza da justificação prova que a justiça em Deus é algo mais que benevolência.

 

Notas:

 

[1] subjetivo - procedendo ou ocorrendo na mente de uma pessoa.

 

[2] infusão - preencher ou fazer com que seja preenchido com alguma coisa.

 

[3] Símbolos - confissões, credos, resumos ou artigos de religião.

 

[4] expiar - fazer satisfação por uma ofensa.

 

[5] antítese - o oposto direto ou exato.

 

[6] pertinência - relação ou relevância adequada ao assunto em questão.

 

[7] didático - moralmente instrutivo.

 

[8] desaprovação - desaprovação moral; condenação.

 

[9] intuitivamente - percebido pela mente instintivamente.

 

[10] inexoráveis - incapazes de serem persuadidos.

 

[11] remissão - perdoar; perdoar; para cancelar a culpa.

 

[12] mutável - sujeito a alterações.

 

[13] preceito - qualquer mandamento ou ordem que pretenda ser uma regra autorizada.

 

[14] revogação - abolição, eliminação.

Pesquisador, Tradutor, Editor e Organizador: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.

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