Os Cânones
de Dort, Cabeça I: Da Predestinação Divina.
Autor: Rev. Prof. Dr. Douglas J. Kuiper. Traduzido
e adaptado por: Rev. Prof. Dr. Albuquerque G. C.
A primeira cabeça de doutrina nos Cânones de Dort
apresenta o ensino reformado sobre a predestinação divina e expõe alguns erros
a respeito dessa doutrina. Vou explicar o erro arminiano que nossos pais reformados
rejeitaram, resumir o ensino positivo da primeira cabeça e avaliar a resposta
reformada. Salvo indicação em contrário, todos os artigos dos Cânones aos quais
me refiro são encontrados na Cabeça I.
O erro arminiano e a reprovação
reformada:
Simon Episcopio, porta-voz dos arminianos no Sínodo
de Dort, disse: “Nós não temos tantos
escrúpulos quanto à
doutrina da eleição; mas é na Reprovação que reside a dificuldade.” Por esta
razão, os arminianos queriam que o Sínodo se concentrasse na reprovação, e não
abordasse a doutrina da eleição.
Para ser claro, os arminianos não negaram que alguns
iriam para o inferno. Em vez disso, eles negaram que Deus tivesse na eternidade
designado indivíduos específicos para o inferno. De acordo com eles, Deus
determinou que todas as pessoas que se colocassem em uma determinada categoria
iriam para o inferno – aqueles que, depois de ouvir o evangelho e receber uma
oportunidade justa de crer, escolheriam a incredulidade e a desobediência. Como
as crianças que morreram na infância não receberam essa “oportunidade justa”,
os arminianos negaram que tais crianças, nascidas de crentes ou incrédulos,
fossem para o inferno.
Nossos pais reformados não estavam convencidos de
que o erro arminiano se limitava à reprovação. Por um lado, a relação lógica da
reprovação com a eleição deu-lhes uma pausa: se Deus decretou reprovar uma
categoria de pessoas, mas não indivíduos específicos, o mesmo não seria verdade
para Seu decreto de eleição? E se Ele pune alguns apenas por causa de sua incredulidade e desobediência,
que papel a fé e a obediência desempenham na eleição de Deus para a salvação? Além
disso, nossos pais reformados sabiam o que os arminianos haviam escrito em “The
Remonstrance”, (A Repreensão); um documento que eles apresentaram em uma
conferência em Haia em 1610:
Deus, por um decreto eterno e imutável em Seu Filho,
Cristo Jesus, antes de lançar a fundação do mundo, determinou, da raça humana
caída em pecado, salvar aqueles em Cristo, por causa de Cristo, e por meio de
Cristo, que pela graça do Espírito Santo, creria em Seu mesmo Filho, e que
perseveraria naquela mesma fé e obediência da fé, pela mesma graça sem cessar
até o fim; mas, por outro lado, deixar os obstinados e incrédulos sob o pecado e
a ira, e condená-los como alienados de Cristo. Com base nisso, nossos teólogos
e ministros reformados concluíram que o erro arminiano também se referia à
eleição.
O erro arminiano, eleição
condicional:
Na raiz do erro arminiano estava sua visão de que a eleição
é condicional, isto é, que Deus escolhe salvar aqueles que creem e obedecem,
porque eles creram e obedeceram. A citação de “The Remonstrance” indica isso:
Deus escolheu salvar aqueles que “creriam… e que perseverariam naquela mesma fé
e obediência… até o fim”.
Os arminianos rapidamente acrescentaram que a
fé, a obediência e a perseverança são da graça, mas redefiniram a graça como
“um conselho gentil” (III/IV, B, 7) que é comum a todos os homens (III/IV, 10;
B, 5) e não como a obra Toda-Poderosa e irresistível de Deus nos eleitos. Vendo
a eleição como condicional, os arminianos negavam que Deus elegesse indivíduos
particulares para a salvação. Em vez disso, Ele escolheu uma certa categoria de
homens – aqueles que acreditam, obedecem e perseveram até o fim em fé e
obediência (B, 1, 3).
E a pessoa que acredita por um tempo, até
experimenta por um tempo os benefícios dos crentes,
mas depois cai da graça??? Os arminianos ensinavam que havia vários tipos de
eleição – uma geral e indefinida, referente àqueles que creem por um tempo, mas
não perseveram até o fim, e uma particular e definida, referente àqueles que
finalmente vão para o céu (B,
2, 5). Por causa desses vários tipos de eleição, alguns eleitos perecem (B, 6),
de modo que ninguém pode ter certeza nesta vida de que ele é escolhido para a
glória celestial (B, 7).
Essas declarações na Rejeição de Erros não são
apenas palavras que os reformadores colocaram na boca dos arminianos; eles são pegos
emprestados das “Opiniões dos Remonstrantes”, um documento que os Arminianos
escreveram e submeteram ao Sínodo de Dort.
Cabeça I, A resposta reformada:
A primeira parte da Cabeça I apresenta
positivamente o ensino das Escrituras sobre a eleição (7-14) e reprovação (15),
e dá implicações pastorais (13-14, 16-18).
O artigo 7 é uma bela declaração confessional sobre a graça eletiva de Deus. O artigo enfatiza 1) que Deus designou um número específico de pessoas para a vida eterna (“Ele... escolheu... um certo número de pessoas para a redenção em Cristo”); 2) que a necessidade de Ele os ter escolhido em Cristo era que Ele sabia que eles seriam pecadores; 3) que os eleitos saibam que são eleitos antes mesmo da morte de Cristo, porque nesta vida Deus lhes dá todas as bênçãos da salvação; e 4) que a eleição é “de mera graça, de acordo com o beneplácito soberano de Sua própria vontade”.
Os Artigos 9 e 10 elaboram o caráter incondicional
desta eleição. O artigo 9 enfatiza que a fé e a santidade do homem não são a
razão da eleição, mas o fruto e o efeito da eleição. O artigo 10 explica “a
única causa desta eleição graciosa” é “o beneplácito de Deus”.
Porque a eleição é obra soberana de Deus, Ele
tem apenas um decreto de eleição, não vários (8); este decreto é imutável (11);
e Deus assegura a Seus eleitos que eles são eleitos, embora em vários graus e
medidas diferentes (12).
O artigo 15 estabelece a doutrina da reprovação, a
saber, que Deus determinou eternamente deixar os outros na miséria do pecado,
não lhes dando fé e conversão, mas deixando que seus pecados produzissem sua
própria ruína. Os réprobos são um número específico, o número de todos aqueles
que não são eleitos. Ao designá-los para a condenação eterna, Deus manifesta
Sua justiça.
Apreciando
esta resposta:
Os crentes reformados ortodoxos amam, estimam e
apreciam esta primeira cabeça por várias razões.
Primeiro, É explicita e genuinamente bíblica. Nos dezoito
artigos positivos, nossos pais citaram dezesseis passagens das Escrituras (não
apenas versículos), e se referiram a mais cinco. Os nove artigos da seção
Rejeição de Erros incluem referências a vinte e três passagens das Escrituras.
O ponto não pode ser enfatizado demais: nossos antepassados responderam ao
falso ensino com as Escrituras.
Segundo, O ensino dos Cânones conecta a doutrina da
eleição ao evangelho da salvação em Cristo. A eleição tem tudo a ver com o evangelho:
somos eleitos em Cristo! Os eleitos são pecadores, necessitados de salvação! O
decreto de eleição de Deus inclui o decreto para nos conceder todas as bênçãos
da salvação! A própria eleição é “a fonte de todo bem salvífico” (9; grifo meu).
O primeiro título ressalta essa conexão em
seus seis primeiros artigos. Por que nossos pais não começaram com a doutrina
da eleição imediatamente no Artigo 1? Porque eles colocariam a eleição
claramente no contexto do evangelho da graça. Os artigos 1-6 estabelecem os
fundamentos do evangelho: todos os homens pecaram em Adão e merecem a maldição
de Deus (1). Deus manifestou Seu amor em Jesus Cristo (2). e através da
pregação do evangelho chama muitos a crerem em Cristo e se arrependerem (3).
Aqueles que não creem experimentam a ira de Deus, e aqueles que creem recebem a
vida eterna (4). Os incrédulos são responsáveis por sua própria
incredulidade, enquanto a fé, ao contrário, é um dom de Deus (5). E o decreto
de Deus é a explicação mais profunda para a fé de alguns e a incredulidade de
outros (6).
Por que vale a pena destacar essa conexão da
eleição com o evangelho? Uma razão é nos lembrar que qualquer expressão da
doutrina da eleição que não relacione a eleição com o evangelho não é
apropriada. Refiro-me, por exemplo, àqueles que afirmam ser eleitos, mas não confessam
pecados específicos, que não expressam sua necessidade da morte de Cristo e Sua
graça contínua, e que desconsideram Sua lei. Estes tratam a eleição como algo
que não tem nada a ver com o evangelho da salvação para os pecadores.
Outra razão é nos lembrar de seguir este padrão ao
explicar a fé reformada a quem não a entende. Ao explicar a fé reformada, não
devemos começar nos referindo à doutrina da eleição. Em vez disso, devemos
começar explicando o evangelho: o pecado do homem, a maldição de Deus, a
necessidade do homem por Cristo e a provisão de Cristo de Deus. Quando a pessoa
entende o evangelho, ela está pronta para ouvir e entender a doutrina da
eleição.
Terceiro, Os crentes reformados apreciam a abordagem
pastoral calorosa de todos os Cânones, e particularmente da primeira cabeça.
Relaciona a eleição ao crente. Por que fui eleito? Porque Deus quis me escolher
(10). Como sei que, sendo eleito, irei para o céu? Porque a eleição é imutável
(11). Como posso saber que sou eleito?
Observando em mim mesmo os frutos da eleição, “tais
como uma verdadeira fé em Cristo, temor filial, uma piedosa tristeza pelo
pecado, fome e sede de justiça”, etc. (12). Que resposta esta doutrina da
eleição produz em mim? Diariamente eu me humilho diante Dele, adoro Sua misericórdia
para comigo, me examino e odeio e fujo do pecado, e me esforço cada vez mais
para obedecer a Sua lei. Enfaticamente, a doutrina da eleição não me leva a
ignorar a lei de Deus (13). E o meu filho que morre na infância? Mesmo que a
criança não tenha chegado à fé consciente em Cristo, o fato de que Deus
continua Sua aliança na linha das gerações significa que não tenho motivos para
duvidar da eleição e salvação de meu filho morto (17).
Até mesmo a doutrina da reprovação é apresentada
pastoralmente. Talvez eu não tenha certeza de que meus pecados foram perdoados;
posso ser réprobo? A lei exige perfeição de mim, e sei que estou aquém; eu sou
réprobo? Nem sempre me concentro em Deus e desejo servi-lo como devo; Deus me
reprovou? O artigo 16 diz que só devem estar aterrorizados aqueles que rejeitam
toda consideração por Deus e Cristo, que amam o pecado e este mundo, e
continuam em um estado não convertido. No entanto, aqueles que veem a enormidade
de seu pecado e percebem quão aquém estão do padrão de eus!!! eles não precisam
ficar aterrorizados com a reprovação, mas devem continuar a usar os meios da
graça.
Finalmente, amamos esta primeira cabeça porque ela
expõe a glória de nosso Deus diante de quem todos devem se curvar. Estamos
propensos a murmurar sobre a graça gratuita de Deus? Ou a severidade de Sua
justiça na reprovação nos leva a questionar Sua bondade? O artigo 18 nos lembra
que somos apenas homens, que não devem responder assim contra Deus (Romanos
9:20); que é lícito a Deus fazer o que Ele quer com os Seus (Mt 20:15), e que
nossa resposta deve ser a do apóstolo Paulo:
“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como
da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis
os seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu
conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque
dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém”. (Romanos 11:33-36).
Bibliografias
consultadas:
1 Gerard Brandt, The History of the Reformation
and Other Ecclesiastical Transactions In and About the Low Countries (Londres:
T. Wood, 1722), 3:102.
2 “The Remonstrants (1610)”, in Reformed
Confessions of the 16th and 17th Centuries in English Translation, ed. James T.
Dennison, Jr. (Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2014), 4:42.
3 “B” aqui e em toda a edição refere-se à parte
“Rejeição de Erros” dos Cânones em cada cabeça.
4 Este documento encontra-se em Homer C.
Hoeksema, The Voice of Our Fathers: An Exposition of the Canons of Dordrecht
(Jenison, MI: Reformed Free Publishing Association, c.1980, 2ª ed., 2013),
103-109.